quinta-feira, 31 de março de 2011

TRÊS HAICAIS (fatais)


Fatalmente morto
Na direção de uma lâmpada
O inseto se lança.




Nada estarrecida
Em águas mui caudalosas,
A mosca na sopa.




Vejo o rock’n’roll
Do besouro requebrando
Na teia da aranha.



(In: Versorragia Verborrágica - 2006/2011) 




terça-feira, 29 de março de 2011

ÁRVORES VELHAS

 
Árvores velhas deste caminho
digam-me agora que estou sozinho:
Por que de mim o amor foi-se embora?


Árvores velhas e desfolhadas
quão belas, flácidas e enrugadas,
a solidão me espera lá fora.


Árvores velhas e companheiras
eu levarei minha vida inteira
para entender tudo o que acontece


Nesta metáfora louca e aflita
da vida curta, tola e esquisita,
árvores velhas já não florescem.


(In: O Perfume do Tempo - 2004/2005)




domingo, 27 de março de 2011

SONETO DAS BORBOLETAS

Quando a vida teceu suaves vestes
De sonhos brandos, ternos, muito breves,
Foste ao riacho beber água pura
E na concha das mãos... amor... ternura.

Caminhaste nos braços dos injustos.
Derrubaste as barreiras pelo impulso
Da força primitiva de um lugar
Tendo o simples prazer de se entregar.

Por entre as árvores a noite veio
E viste um mundo novo, turvo, esplêndido,
Colorindo um luar pálido e feio,

Que fere a natureza em mil facetas
No lindo encontro plástico e autêntico
Do místico bailar das borboletas.


(In: Versorragia Verborrágica - 2006/2011)



 

PARA MANUEL


Alô, Triste!
Sou apenas mais um que te adora.
Tenho um enorme apreço
Pelas tuas palavras,
Sonhos versificados.
Que poesia magnífica!
Eternamente terna.

Alô, poeta MAIOR.
Antes que o trem da esperança chegasse,
O trem de ferro partiu.

Diga lá, Triste.
Em qual estrela resides?
Em qual planeta te escondes?
Sei que depois da Consoada
Voaste direto pra Pasárgada
– Feito uma Cotovia –
Distraído demais.

Manuel,
A rotulagem pagã foi rasgada
Pela dureza do corte da tua arte
O boi morto tísico
Ainda bóia no teu “Capiberibe”
– Capibaribe –
Em tantas enchentes.

Ei, Bandeira!
Eu quero uma ponte que ligue este mundo a Pasárgada
E, quem sabe, ser apenas amigo do amigo do rei.
Deixe-me ler teus poemas
E sonhar...
Pra sempre sonhar...

Até breve, Manuel.
Que Deus te abençoe!


(In: Versorragia Verborrágica - 2006/2011)




 

ALIENADOS (letra de música)

Apesar de estarmos convictos de que nada vai mudar
A esperança é uma sombra a nos acompanhar
Nos arrastamos pelo cantos sem determinação
Isso é tudo o que resta da nossa pobre civilização?

Depois de ver toda essa droga, o que é que sobra?
Depois de ver toda essa droga, quem é que sobra?

Para de gritar, idiota! Estamos dormindo
Através de um grande espelho tudo está se refletindo
Como posso sentir a luz, mergulhado na escuridão?
O amor é uma espada cravada no meu coração.

Depois de ver toda essa droga, o que é que sobra?
Depois de ver toda essa droga, quem é que sobra?

Dizem por aí que a gente não se preocupa com nada
Ainda por cima nos chamam de geração alienada
Vamos ver aonde é que esse nobre mundo vai parar
Se vai sobrar alguma coisa, vai dar pra consertar?

Depois de ver toda essa droga, o que é que sobra?
Depois de ver toda essa droga, quem é que sobra?
Depois de ver toda essa droga, o que é que sobra?
Depois de ver toda essa droga, quem é que sobra?



OBS.: À letra acima acrescentou-se música (punk-rock) de Wagner Miranda, meu irmão. O manifesto foi apresentado no FICO (Festival Interno do Colégio Objetivo) pela banda ONG (Wagner, Pablo, Hide, Júnior e Vicente) em 1995. É evidente que não ganhou o festival.




quarta-feira, 23 de março de 2011

DIREÇÃO


No meio da vida existe um ponto.
Um ponto que aponta
Pro desequilíbrio torto
Da ponta do teu nariz,
Pras coisas que um dia podem
Te fazer feliz.

No meio do mundo existe um conto.
Um conto que conta
Uma história comprida,
Cumprida por homens que marcham
Com pernas cansadas
Em busca de tudo
Na direção do nada.


(In: Versorragia Verborrágica - 2006/2011)




domingo, 20 de março de 2011

BOM DE BOLA


Aqueles homens e seus bonés
observavam à beira do campo
– o popular “camps” –
de terra batida
uma partida de futebol
dos meninos que vinham
com sede de bola
de todas as partes
de todos os reinos
pés firmes no chão
e sonhos no coração
de repente
aquele negrinho franzino
recebeu a bola
na linha divisora do campo
e com o pé esquerdo
– primeiro toque –
direcionou a menina
entre as pernas do adversário
então
correu até a faixa direita do “camps”
e com dois cortes
– tipo navalha –
deixou dois adversários
sentados na poeira
ali mesmo no barro
atrevido que só ele
partiu em direção à área
entortou o zagueiro
despachou o goleiro
e no último contato com a bola
num toque
– não mais que sutil –
balançou a rede (que não havia)
a partir daquela tarde
aqueles homens guardaram
debaixo de seus bonés
a única certeza:
aquele menino era
bom de bola.


(In: Versorragia Verborrágica - 2006/2011)


Obs.: A ilustração acima "Muleque" foi gentilmente cedida pelo artista Fernando Raposo (fernadoraposo.blogspot.com).







ANJO DA GUARDA


Anjo da guarda, oh! anjo querido,
ora por mim que sou teu amigo,
cuida de mim e faze-me abrigo,
anjo bonito, oh! anjo bendito.
Nunca me esqueças. Anda comigo,
deixa-me longe destes perigos,
cuida de mim que sou teu amigo,
ora por mim e faze-me abrigo.

Anjo de luz, clareia-me agora.
Aos pés da cruz tu rezas e choras,
Deus me defenda e Nossa Senhora,
tu me defendes a toda hora.
Quando preciso, tu não demoras,
é perigosa a vida lá fora,
anjo de luz, mas tu não demoras,
reza por mim com Nossa Senhora.

Anjo repleto de paz e amor,
vives no céu de Nosso Senhor.
Anjo perfeito, meu salvador,
sou imperfeito e dou-te labor
nas sendas tristes de sofredor.
Amo-te sempre, cura-me a dor,
anjo de luz, de paz e de amor,
és a benção de Nosso Senhor.

(In: O Perfume do Tempo - 2004/2005)



 

O MANIFESTO DA ARTE

A Arte divaga entre o fim e o começo
e vai além.
Desvenda o que esconde,
vai às montanhas,
sai das cavernas,
sobe nos telhados das casas
e diz a todos:
- Eu sou a Arte, não sou parte.

Há Arte na voz que fala e
no silêncio da multidão que se cala.
A natureza transpira Arte.
A Arte está em cada um de nós
que nascemos da Arte,
crescemos na Arte e
morreremos com Arte.

Veja a Arte dos teus olhos,
roda de bicicleta sobre uma cadeira,
num prédio de vinte andares
ou num barraco de madeira.

A Arte não tem medida.
A Arte é comedida.
Ela mora no fim do mundo
ou num puteiro imundo.

A Arte
é a palavra que falta num verso,
é o retrocesso da vã guarda.
AnteArte
Arte
AntiArte.

A Arte é a antítese da Arte,
anda com a cabeça enterrada no chão,
toca as estrelas e vai aos infernos,
traduz o Universo e oculta mistérios.

Uma letra esquisita,
um pingo na tela
e todas as cores
de uma aquarela.

O teatro de revista
e o cinema novo:
a Arte revela-se ao povo;
a Arte dos andarilhos:
Hermeto, Sivuca e Carrilho;
a Arte de pé em pé:
Maradona, Zico e Pelé;
A Arte como ela é:
Tom Zé, Noel, Noé e
Patativa do Assaré;
a Arte encontra lume
em Manos, Browns e Antunes.

A Arte rouba a cena,
inverte o problema,
ganha dinheiro
e o joga no lixo.
A Arte que  vive
não morre nem se conforma.
A Arte se eterniza.
A Arte do improviso:
Aragão, Golias e Anísio;
A Arte dos palhaços belos:
Oscarito e Grande Otelo;
A Arte pela candura
é Carlitos com toda ternura.
A Arte assusta,
pois que é sempre difusa.

A criança sorri e a entende,
o homem adulto a banaliza,
a Arte é imprecisa,
escrava que se escraviza.

Há Arte num prato vazio,
num vaso sem flores,
no fim dos amores e
no adeus tardio.

Ela vai às festas sem ser convidada
e em muitas portas é barrada,
alguns a deixam entrar,
pobre de quem a quer rotular.

Há Arte até onde não há Arte,
lugar nenhum,
em toda parte,
Arte pela Arte,
no encontro casual,
no fundo de quintal,
na roupa no varal,
na conjunção carnal,
em algo visceral.

A Arte não se intimida,
antes confunde e conquista.

Coma Arte, beba Arte,
durma Arte, sonhe Arte,
consuma Arte, venda Arte,
deixe que a Arte aconteça.

A Arte eleva a mente
e infecta os ossos.
A dúvida do eco de Cecília;
a pedra no caminho de Drummond;
os bons mineiros no Clube da Esquina;
Vinícius, Jobim, João e a bossa-novíssima;
a tropicália desvairada dos doces baianos;
Pixinguinha, Bandolim, Jackson e Gonzaga;
a Arte tardia, tranqüila e exata
de Cartola e Coralina;
o cinquecento brasileiro,
a arte por inteiro;
Aleijadinho e Portinari,
Arte - bendita - Arte.

Lógica hipócrita,
dúvida exótica,
desleixada, emproada,
mãe e puta,
santa e bruxa.

A Arte é muito louca,
afinada e oca,
é um tijolo na vidraça,
um jogo de trapaças.
Memórias póstumas de Quaresma;
Triste fim de Brás Cubas;
a Arte se funde em prol da Arte,
faz e desfaz,
movimenta mãos, bocas, pés, vidas e,
principalmente, idéias.

A fé é Arte, o Amor é Arte,
o ódio é Arte, você é Arte.

A noite, a lua e a mulher;
o menino, o velho e o sino;
as bandeiras e o Bandeira;
a alma, a arma, o sim e o não;
o plástico, a pedra e o carvão;
toda Arte, tudo Arte, em tudo Arte.

Um bar cheio de bêbados vagabundos,
o altar de uma igreja,
o leite derramado e inútil,
o mal, a culpa e o ardor da inveja.

A Arte nasce, morre e renasce,
vive alegremente triste,
existe onde nada existe,
não se defende, não se define,
a Arte se entrega,
e, acima de tudo, ela é.

Deus deu vida à Arte
quando lançou um anjo rebelde na Terra.


(In: O Perfume do Tempo - 2005)


* Obs.: O quadro acima "Os peixes" foi pintado pelo artista e designerWagner Miranda (wahmiranda.blogspot.com)


sábado, 19 de março de 2011

AO PAI DA MATÉRIA

 
Entra em campo o maestro da rádio do povo,
craque no corre-corre da bola no jogo,
pimba na gorduchinha e ripa na chulipa,
cantarola poeta que a massa se agita.


Com mágicas palavras e a boca contente,
a torcida te aplaude, profeta da voz.
Democrata fiel, não te esqueças de nós
nas gerais dos estádios te amando pra sempre.


Porta-voz da Nação oprimida e calada
nos palanques e estádios, guerreiro da luta
brasileira de causa desproporcionada,
vinte anos sob a égide da força bruta.


Calou-se o microfone e a torcida parou.
“Parou por quê? Por que parou?” - diz ele alegre.
“Continuo fazendo o que gosto, até breve”,
“é fogo no boné do guarda e . . . ííííííí . . . quííííííí . . . goooooool”.


(In: O Perfume do Tempo - 2004/2005)

O HOMEM SEM CORAÇÃO (Romance - ano 2005/2006)

1 - Mirtes vai à luta


Passos apressados, barulho ensurdecedor, buzinas estridentes, escapamentos irrequietos, obras na pista e uma multidão seguindo afoita pelas ruas. A confusão de ruídos é insuportável, os sons difusos e dissonantes criam uma densa massa sonora que penetra nas mentes contaminando as almas. Pressa, muita pressa, e mesmo que seja janeiro, mês de férias para muita gente, início do quarto ano do século XXI, a vida é acelerada na vultosa cidade de São Paulo. O estresse urbano atinge todas as pessoas que sofrem, irremediavelmente, os efeitos desgastantes da sobrevivência nesta gigantesca metrópole. São Paulo é dinheiro, cada qual que encontre uma maneira de ganhá-lo, a cidade costuma ser intolerante com os que não o têm. A agitação se faz presente com grande intensidade e em toda parte, desde os bairros mais distantes do centro da cidade que formam a interminável periferia paulistana, até os mais próximos do marco zero da capital, como é o caso do histórico bairro do Ipiranga...
– Meu Deus, o que farei desta sina! É só trabalho e mais trabalho, os serviços nesta casa não têm fim! Não nos divertimos, não passeamos, não viajamos e nem ao cinema sequer vamos mais! A Ana e o Mário estão aproveitando as férias em Ubatuba, até compraram um apartamento por lá. E a gente aqui, eu trabalhando feito uma condenada e você inerte nessa poltrona, lendo um monte de livros velhos que não nos levarão a nada, eles apenas nos distanciam das coisas boas que a vida oferece! Quando será que entraremos em sintonia com o mundo e sairemos desta ruína econômica na qual estamos enfiados? Será que algum dia poderemos dar um pouco de conforto aos nossos filhos, Alberto?
Alberto interrompeu a leitura, as belas poesias de Cecília Meireles poderiam esperar por alguns minutos, fixou o olhar por cima das lentes dos óculos na mulher e argumentou:
                            – Nossa Senhora! O que você quer que eu faça, Mirtes? Sou um educador, preciso dos livros, leio e ensino, dependo deles, você sabe muito bem! Estou sempre pronto a colaborar nas atividades domésticas, mas também trabalho praticamente o dia inteiro, não entendo o porquê de tamanha reclamação, Mirtes! O nosso problema é dinheiro! Dinheiro! A falta de dinheiro é o que nos leva a viver cada vez mais longe dos prazeres da vida. Faço o que posso, tento todos os dias encontrar uma maneira de melhorar a nossa situação financeira, viver com o minguado salário de professor da rede pública estadual não é fácil, mas acho que não devo fugir das minhas responsabilidades e, no mais, não me interesso por qualquer coisa que os outros façam ou deixem de fazer! Vai descansar, vai! Eu termino de varrer a casa.
Enquanto Alberto tomava posse da vassoura, Mirtes se sentou e, um pouco mais calma, voltou à razão: “Meu Deus! Estou prestes a enlouquecer. Não posso agir desta forma com o Alberto, ele não merece”, ponderou em silêncio.
A mulher sabia que não podia culpar o marido por todos os problemas por que passavam, Alberto era um homem do qual não se tinha do que reclamar. Trabalhava demais também, tanto no que dizia respeito à profissão que exercia, quanto nas atividades domésticas nas quais tentava se empenhar da melhor forma para ajudá-la. Ela não entendia como Alberto conseguia ler e se concentrar diante de tantos afazeres e interrupções que a vida doméstica proporcionava a ele, por diversas vezes via o marido lavando louças com um livro aberto sobre o balcão da cozinha, para ele não importavam as dificuldades, nada conseguiria tirar-lhe o prazer da leitura, era apaixonado pelos livros e pelas letras. Mirtes lembrou-se também de que até pouco antes do início das atuais férias escolares, Alberto havia ministrado aulas particulares de Literatura e Gramática para alunos que estavam em recuperação escolar e solicitaram-lhe os conhecimentos da nossa língua portuguesa como última tentativa de não perderem o ano letivo ou simplesmente para recaptularem os ensinos e aulas daquele ano, e mesmo que o professor não gostasse de cobrar pelo trabalho extra, pois achava que a educação deveria ser dada de graça e de forma abundante a quem dela precisasse, as aulas extras para alguns alunos de escolas distantes renderam-lhe alguns trocados que foram extremamente úteis no final de 2003, porém de vários alunos da escola na qual lecionava não cobrou um tostão pelas aulas de reforço, sabia que muitos deles não tinham condições econômicas para pagá-las, Mirtes admirava este lado solidário e prestativo do marido. Alberto era um homem calmo, paciente, educado e amável que qualquer mulher adoraria ter como companheiro e ela sabia disso. Arrependida pela explosão de nervos momentânea, dirigindo o olhar para o marido que ainda ajuntava e recolhia a poeira e a sujeira do chão, ela disse:
– Alberto, meu amor, me desculpe! Ando ultimamente muito nervosa, principalmente quando me lembro das dívidas que temos, cada vez mais estamos nos afundando nelas, estou muito preocupada com o futuro dos nossos filhos, com as coisas que ainda temos a conquistar, com a aquisição de uma casa própria, este ano apenas começa e a gente com as mesmas dificuldades e os mesmos problemas do ano passado, parece que esta situação nunca melhorará, sei que não devo descarregar todos estes problemas única e exclusivamente em cima de você, mas devemos compartilhá-los na tentativa de encontrar as soluções corretas para todos eles. Você é a única pessoa com a qual eu posso desabafar.
O professor sentou-se ao lado da mulher e abraçando-a carinhosamente, como se estivesse vislumbrando o futuro, disse:
– Um dia a nossa vida melhorará, Mirtes. Acredite em mim. Um dia eu sei que melhorará, sinto como se algo dentro de mim dissesse que um dia tudo vai melhorar.
– De que maneira, querido?
– Não sei. Não sei. Mas alguma coisa deve acontecer na nossa vida, não podemos aguentar esta situação para sempre.
– Alberto, você não está pensando em fazer nenhuma loucura, não é?
– Claro que não, Mirtes, você me conhece. Apenas acho que a vida dá voltas e muda constantemente, um dia ela também mudará para nós e, quem sabe, levaremos o resto dos nossos dias tranqüilamente até que a indesejada das gentes venha nos buscar.
– E encontrará lavrado o campo, a casa limpa e a mesa posta com cada coisa em seu lugar, querido?
– Bem, quanto ao campo e à mesa eu não sei, mas pelo menos a casa já está varrida.
– Alberto, eu te amo. –  disse a mulher rindo-se do desfecho do diálogo mais prático que poético encontrado pelo marido.
– Eu também te amo, Mirtes. – retribuiu o professor.
Ainda sentado e acariciando o rosto da esposa, disfarçadamente Alberto viajava em pensamentos, era um homem inteligente e sensato, sabia que Mirtes tinha razões de sobra para se preocupar, ele também vivia tenso devido a escassez de dinheiro, mas dissimulava seu estado de espírito para não piorar o quadro de instabilidade emocional da esposa que ele tanto amava. Mirtes para ele sempre fora uma mulher exemplar, totalmente dedicada à família, com quem se casara havia quase quinze anos e que lhe dera mais três motivos de caminhar na luta por dias melhores: Rafael, o primogênito, tinha treze anos; Lívia, que muito lembrava os belos traços físicos da mãe, onze anos; e Alberto Monteiro Filho, o caçula Betinho, apenas três anos. Ultimamente, a vida não estava fácil, os vencimentos que o professor obtinha lecionando em escola pública estadual eram insuficientes para oferecer o mínimo de conforto à família que ano após ano passava por grandes dificuldades financeiras. O ano que havia terminado certamente foi o pior de todos, o último suspiro financeiro de 2003 foi a venda do velho carro que tinham, mas o dinheiro desapareceu rapidamente em meio às dívidas, sendo inclusive insuficiente para saldar um quarto delas. Os filhos maiores Rafael e Lívia que estudavam em escola particular, numa das melhores da região do Ipiranga, haviam sido compulsoriamente transferidos para a escola pública, na época da transferência o professor já não tinha como sustentar o pagamento das mensalidades da escola particular, além disso, como se fosse um consolo para abrandar a sensação de insucesso financeiro para com os filhos, Alberto que durante toda a sua vida docente apregoava, com muita sinceridade, que a qualidade da escola dependia muito da aplicação e do interesse dos alunos, pois que com o acumulo de conhecimentos estes se tornariam mais exigentes e curiosos, impulsionando a qualidade do ensino onde estivessem, não se cansava de repetir uma velha frase sua, talvez como forma de encorajar e motivar os filhos: “Há excelentes alunos em escolas públicas e péssimos alunos em escolas particulares”, tinha razão, mas no fundo, como um pai que deseja o melhor para os filhos, sabia das enormes dificuldades enfrentadas pelo ensino público dos nossos dias, não pela falta de dedicação dos zelosos professores que neste ofício se lançam com a nobreza da finalidade educativa, mas pelo descaso e a falta de interesse do governo que não vê vantagens em dar uma educação digna à população e atira o ensino público à sua própria sorte, justificando-se sempre pela eterna falta de recursos.
Enquanto Rafael e Lívia se entretinham em suas atividades juvenis, Betinho, o pequeno rebento, ocupava a mãe em tempo quase integral. Pobre Mirtes! O menino parecia dar trabalho por uma dezena de crianças, não parava um minuto e as suas travessuras atingiam as finalidades para as quais ele as realizava com extrema precisão. A mais recente mania de Betinho era a de atirar objetos no vaso sanitário para em seguida despachá-los pela descarga, sabonetes iam aos montes, escovas e cremes dentais também, enfim, tudo o mais que encontrasse pela frente, a porta do banheiro já não se tratava de obstáculo para o pequeno, enquanto esta pôde ser mantida fechada nenhum problema ocorria, até que o moleque descobriu que poderia utilizar-se de um inofensivo banquinho para alcançar a trava da porta. Pronto! Para Betinho a irreversível descoberta se fez. Alberto quase sempre era incumbido de consertar os estragos. Uma vez, Seu Pedro, o vizinho que era encanador, fora solicitado para retirar dois talheres de canos entupidos no banheiro, lá se ia mais dinheiro desperdiçado para reparar os estragos causados pelas peraltices de Betinho.
– O menino está com saúde e é isso que importa, deixe-o brincar, Mirtes! – dizia o pai.
– Brincar, sim. Destruir a casa inteira, não! Este menino parece um furacão! Deus me livre! – replicava a mãe vigilante e exausta, mas que sempre tentava ser a mãe mais carinhosa e compreensiva do mundo para o pequenino Betinho.
Mirtes andava esgotada, a rotina como dona de casa era estressante demais para ela que era uma mulher voltada para o mercado de trabalho, também neste aspecto 2003 havia sido um ano exaustivo demais, amava a família, amava o marido, amava os filhos e, sobretudo, amava viver, não media esforços para cumprir todas as tarefas do lar, apenas a situação financeira a incomodava, bancária desempregada havia mais de quatro anos, perdera o emprego na agência onde trabalhava pouco antes do início da gestação que trouxe ao mundo o pequeno Betinho, desde então, nunca mais havia conseguido resgatar sua dignidade profissional como economista. Durante muito tempo não houve currículo que não fosse entregue e nem concurso público que não fosse por ela prestado, por vezes até conseguira êxitos momentâneos que logo foram sufocados pelos preconceitos e burocracias do mundo moderno: “Desculpe-me senhora, mas o perfil do qual estamos precisando é outro, caso a nossa diretoria mude de idéia, ligaremos para a sua casa” – disse-lhe uma selecionadora. “Gostamos da senhora, mas, infelizmente, a vaga que havia foi preenchida ontem” – mentiu, certa vez, um gerente de recursos humanos. Mirtes estudou demais e classificou-se em dois concursos públicos, mas nunca fora chamada para qualquer um deles, soube pelos jornais que faltou verba para que o governo contratasse todo o pessoal que havia passado. No final das contas, ela chegou à conclusão de que para uma mulher desempregada, mãe de três filhos, com trinta e seis anos de idade, as chances de sucesso profissional na selvagem ciranda globalizada do universo capitalista eram praticamente nulas. Apesar de todas estas dificuldades, ela foi à luta, precisava ajudar o marido que já não sabia o que fazer para garantir o pão e o leite dos filhos, nascida no final do mês de março, esta ariana tinha a virtude de não titubear e não desistir nunca.
Como quem persevera de verdade sempre alcança o que deseja, talvez não da forma que Mirtes gostaria, mas da forma que tinha que ser naquele momento, no final do ano de 2003, para ser mais preciso no início do mês de novembro, uma vizinha, sua amiga de infância, que costurava roupas para uma pequena fábrica têxtil do Brás, fora para ela uma espécie de luz no fim do túnel: “Mirtes, eles não pagam muito, mas dependendo da produção o dinheiro aumenta, você sabe que eu tenho que criar o meu filho sozinha, pois o desgraçado do Rogério me abandonou e é da dignidade deste trabalho que ganho a vida”. Este exemplo tocou Mirtes profundamente. O ofício de costureira também a fazia lembrar sua falecida mãe Dona Rita, profissional da costura que fora muito conhecida no bairro da Vila Prudente, onde morou a família de Mirtes antigamente, que mesmo no fim da vida e constantemente adoentada não abandonou os serviços e, entre linhas e agulhas, satisfez a todos que a procuraram solicitando-lhe os préstimos, pouco fora o retorno financeiro, mas de grande valia fora a satisfação e o reconhecimento profissional de Dona Rita.
Foi difícil para Mirtes o início da nova empreitada, apressou-se como pôde, ressuscitou uma antiga máquina de costuras pela qual nutria muita estima, tratava-se do objeto de trabalho que herdara de Dona Rita, transformou a lavanderia nos fundos da casa em uma pequena oficina na qual pouco conseguia produzir durante o dia, pois tinha que se preocupar também com os trabalhos domésticos, os cuidados com Betinho e deixava tudo pronto para que Rafael e Lívia, quando estavam na escola, nada precisassem fazer quando chegassem, exigia apenas que os dois se dedicassem à leitura e aos estudos. Alberto se virava sozinho, ele a ajudava muito nos afazeres domésticos, o professor, sempre que estava em casa, lavava, passava, varria, cuidava de Betinho e, ainda, carinhosamente, conversava com os filhos adolescentes sobre os mais diversos assuntos, nestas ocasiões sobrava tempo para que Mirtes pudesse trabalhar por mais horas na oficina, porém as costuras que ela não conseguia realizar durante o dia, tinham que ser feitas à noite e, desde que se iniciou na nova atividade, eram constantes as noites e madrugadas em que Mirtes não dormia, atravessava-as costurando para que as encomendas fossem entregues nos prazos estabelecidos pelo patrão. E todos os dias, por volta das onze horas da noite, quando todos já estavam dormindo, inclusive e principalmente Betinho, a mulher atravessava a sala e a cozinha em direção aos fundos da casa onde estavam os fardos de roupas, ficava por ali, inúmeras vezes, até quatro, cinco ou seis horas da manhã. Em várias ocasiões, ouvia a porta do quarto se abrir, e:
– Mirtes, venha dormir! Se você continuar neste ritmo vai ficar doente, mulher! Deixe o restante para amanhã. – Era Alberto em mais uma tentativa de frear a incansável esposa.
– Não posso agora, querido! A fábrica precisa para hoje que os zíperes destes dois fardos de calças estejam pregados, já estou quase terminando, daqui a pouco irei dormir!
– Querida, eu sinto a sua falta, faz tempo que você não se deita mais como a gente fazia antes. A gente conversava um pouco sobre as coisas do dia, rezava e depois dormia, lembra?
– Lembro, Alberto. Mas eu já estou quase terminando os serviços que precisam ser feitos.
– Que horas são, Mirtes?
– Faltam dez minutos para as cinco horas.
– Nooossa!
– Vá dormir, Alberto! Não se preocupe, logo irei também!
Alberto, então, dava alguns passos, deitava-se novamente na cama, mas não conseguia mais dormir, no fundo de sua alma era inevitável a tristeza por entender que todo o esforço anormal do qual a esposa se obrigava era em decorrência da perda da valorização na sociedade da profissão dele. Ouviu dizer que antigamente ser professor era motivo de orgulho familiar e de respeito social, hoje em dia a categoria perdeu o prestígio, a motivação, a remuneração e tudo o que conquistou na tentativa de ensinar um país a ler e escrever decentemente, mas a culpa é de quem? Por fim, restava apenas culpar-se a si mesmo por amar tanto uma profissão, por se dedicar a ela e acreditar na utilidade de passar tantos conhecimentos para mentes ainda em formação.
A pior destruição para um homem é a perda da confiança e da esperança nas coisas em que ele acredita e Alberto, aos poucos, sentia como se o seu fim estivesse próximo.


* * * * * * *

2 - O PSE

Ubatuba, litoral norte do Estado de São Paulo, lugar belíssimo, divinamente agraciado por uma exuberante vegetação litorânea que sobrevive à revelia porque teima em conservar-se impecavelmente linda em meio à destruição inconsequente e contínua da agonizante Mata Atlântica, mais uma vítima da sagacidade mórbida inerente à intolerância humana. Aproveitando o clima quente e agradável do verão no litoral paulista e a paisagem perfeita formada pela união do verde vegetal com o azul do mar de Ubatuba, inúmeras pessoas curtem as férias de janeiro longe da turbulenta capital paulista. Entre estas pessoas há um casal caminhando e massageando os pés a cada passo dado nas areias quentes de uma das praias locais. O casal ruma distraidamente, oculto no meio de tantas pessoas, sem pressa e sem direção, enquanto conversa:
– Mário, está um dia tão gostoso que poderíamos tomar outro banho de mar antes de voltarmos, a água fica com a temperatura muito agradável neste horário da tarde.
– Claro, meu amor. Nós temos todo o tempo do mundo. Estamos aqui para nos divertir.
– Ótimo, querido. Tudo está muito bom. Se a Mirtes e o Alberto estivessem...
Mário interrompe imediatamente a frase, como se fosse intolerável ouvi-la por inteiro, e sem rodeios dirige estas palavras à esposa Ana:
– Vou pedir pela milionésima vez, Ana! Pare de falar do Alberto e da Mirtes! Eu não aguento mais essa sua preocupação obsessiva com os problemas deles! Que você se preocupe com a sua irmã até entendo, mas ela que viva a vida dela e não você!
                            – Mário, por favor, apenas me compreenda! A Mirtes é o único parente próximo que tenho. É natural que eu me preocupe com ela que está enfrentando tantos problemas difíceis, momentos ruins da vida.
– E daí? Por este motivo você vai se culpar por ter menos problemas e ela mais? Meu amor, culpe Deus, os anjos, o diabo, ou quem mais você quiser pela infelicidade dela, menos a si própria! Você não tem nada com isso! Quem deveria se preocupar mesmo é o Alberto, mas ele parece que não está nem aí, enquanto você fica bancando uma de “boa samaritana”.
– Não seja egoísta, Mário! – irritou-se Ana, agora parada no meio da praia, mirando severamente os olhos do marido – Será que você vai viver a vida inteira apenas olhando para o próprio umbigo, se você não se preocupa com os seus familiares, o problema é seu! Tente me entender! Todos os momentos que passamos juntos são ótimos, você sempre faz a diferença, mas eu apenas gostaria de ver também a minha irmã bem, gostaria que ela estivesse aqui, com o Alberto e as crianças, pelo menos para que se distraíssem um pouco, no entanto, nem carro eles têm mais! Será tão difícil para você compreender isto?
Sapiente no trato com a esposa, Mário seria incapaz de magoá-la mais ainda, Ana havia sido sincera e apenas demonstrava o que sentia, ele ponderou que no momento o que poderia fazer de melhor seria mudar de assunto ou calar-se. Ele era quase vinte anos mais velho que Ana, tinha cinqüenta anos e ela trinta e três, tinha também a experiência de quem já havia passado por um casamento desfeito em razão de brigas e desentendimentos, estes fatos davam-lhe a calma e o equilíbrio de quem não perde mais a razão frente a assuntos comezinhos da convivência conjugal, afinal de contas, sentia-se feliz ao lado de Ana em doze anos de união estável e sabia que a esposa era uma mulher sensível e que gostava demais da irmã, sendo natural e previsível a preocupação de Ana com os problemas intermináveis de Mirtes e família. Então, na tentativa de acalmar a mulher e abrandar aquela tensão que se propagou desnecessariamente pelo ar, podendo inclusive estragar aquela estada gostosa do casal em Ubatuba, Mário não viu outra solução que não fosse sugerir:
– Querida, mudando de assunto, vai de sorvete ou de chope?
– Acho que hoje prefiro chope, Mário.
– Então, vamos logo, antes que o chope esquente.    
Caminharam uns dois quarteirões e chegaram a um barzinho que já havia sido testado e aprovado por eles em outras ocasiões, um lugar muito freqüentado na região próxima da praia na qual estavam.  Mário chegou e já foi pedindo:
            – Manda dois chopes no capricho, Liu. – Depois perguntou à esposa o que ela gostaria de beliscar para acompanhar a bebida, Ana sugeriu uma porção de batatas fritas. Mário aproveitando o mote para uma brincadeira, ainda tentando quebrar o clima de tensão devido àquela conversa na praia, soltou esta pérola hollywoodiana, eternizada pela banda Blitz nos “80’ s”:
– Ok, você venceu! Batata frita!
Aos poucos o clima foi se amenizando e entre um copo e outro, enquanto ouvia Ana falar sobre as belezas do lugar, Mário começou a se lembrava de como a conhecera, com que profundidade aquela mocinha prestativa e prendada que na época trabalhava como secretária de um colega dele, o velho advogado Dr. Luís, havia tocado o seu coração desde a primeira vez que a viu. Aquela jovem mulher era charmosa, encantadora e deliciosamente linda “uma menina dentro de um corpo esculpido de mulher” – pensava enquanto babava-se por inteiro quando a via. Logo, Mário passaria a desejá-la por completo, queria tudo com ela: casa, vida e cama, tudo naquela menina tinha um encanto gracioso, muitas foram as vezes em que ele aparecia no escritório do Dr. Luís sem mesmo ter o que fazer apenas para cortejá-la, olhava para Ana cada vez mais diretamente, fulminava-a mesmo com aqueles olhos de cachorro com fome que quer que a dona de a ele de comer, mas a jovem secretária parecia triste e distante, não lhe dava muita bola, tratava-o com a cordialidade que empregava para qualquer pessoa, muito embora, apenas esta cordialidade era suficiente para tocar o coração de um homem perdidamente apaixonado. Mário se lembrava de que naquela época havia alguma coisa que nunca ficou às claras incomodando Ana, quando meses depois perguntou a ela o que a deixava tão triste daquela forma, a moça disfarçou o motivo real dizendo que era impressão dele e que não estava triste, algo de que Mário nunca se convenceu, “talvez fosse solidão” – pensava – “depois que ficamos juntos nunca mais vi a Ana triste daquele jeito”, como respeitava a individualidade, os sentimentos e o jeito de ser da esposa, achou melhor não tocar mais no assunto, “cada pessoa carrega a sua própria cicatriz na alma” – refletia enquanto dava mais um gole no chope, e se um dia aquela menina esteve triste, agora ele não media esforços para fazê-la a pessoa mais feliz do mundo. No início do relacionamento foi difícil cativar a Ana, mas Mário a queria demais e sabia que aquela menina valeria qualquer esforço que ele empregasse, o tempo passou e Mário vagarosamente, dia após dia, foi ganhando a simpatia e o carinho da bela jovem, “o segredo é não forçar a barra” – era o lema dele na época da conquista – “mulher geralmente detesta homem pegajoso”. Os dias se passaram e Ana acostumou-se com o jeito de Mário que, então, começou a convidá-la para tomar um café da tarde um dia, no outro dia um sorvete, conversaram bastante sobre as coisas da vida, até que veio o tão esperado jantar à luz de velas num restaurante chique de São Paulo onde ele se declarou, acompanhado pelo sublime choro de dois românticos violinos propositalmente arranjados para a ocasião, perdidamente apaixonado por Ana, pediu-a desde logo até em casamento, “não há mulher no mundo que resista a tanto” – rememorava o que pensou no dia da conquista. Um ano depois já estavam curtindo os prazeres da vida a dois. “Desde então, como esta mulher me faz feliz, eu sempre precisei de alguém assim na minha vida” – concluiu a lembrança, sem notar que Ana falava já a mais de cinco minutos com ele:
– Alô, Mário aqui é da Terra! Mário, Mário, você não está me ouvindo? Terra chamando, câmbio!
                            – Hein? Ah! Desculpe Ana, eu me distrai relembrando a época em que nós nos conhecemos.
– Tá bom, mas não sai de novo do mundo, ta!
Na realidade, Ana trazia felicidade para Mário sim, no entanto, a mulher era para ele a segunda fonte de felicidade, a primeira era muito dinheiro guardado em gordas contas bancárias. O homem gostava de dinheiro. “E quem não gosta?” – indagar-me-ão por certo, ao que de pronto agora explico – o problema estava mesmo no fato de que Mário gostava mais de dinheiro do que todos nós, pessoas como ele não se importam com meios, contanto que atinjam os fins: dinheiro, mais dinheiro, muito dinheiro. Ainda jovem, Mário, enveredou-se pelos caminhos jurídicos, era advogado, pelo menos conseguiu um diploma e uma inscrição profissional, de que forma não se sabe, tinha pouquíssimo conhecimento jurídico, até hoje ainda dizem as más línguas dos colegas de profissão que o diploma fora comprado e o êxito no exame para a obtenção da inscrição profissional, pura sorte. Constantemente tinha dificuldades no trato com os assuntos relacionados ao dia-a-dia da prática forense, via-se, então, obrigado a abandonar o seu escritório particular em busca de soluções nos escritório de outros profissionais, ou seja, advogados de verdade, as visitas ao escritório do Dr. Luís, por exemplo, eram constantes por este motivo também. Mário pagava almoços, dava caronas, distribuía a esmo sorrisos e tapinhas nas costas, porém o alvo das gentilezas eram sempre pessoas das quais precisava ou de que, numa eventualidade, poderia precisar, era um sujeito promissor, adorava a arte de fazer política partidária, tanto que era filiado, havia muito tempo, do PSE (Partido Socio-Educacional), um partido autoproclamado de centro-esquerda que defendia a educação como solução prioritária para a resolução dos problemas nacionais, mas no fundo, e o Dr. Mário, assim era conhecido e chamado pelos membros do partido, sabia disso, o que o PSE defendia mesmo eram as carreiras políticas para os seus filiados, carreiras estas restritas ao alto escalão partidário, e acordos que enchessem os cofres da legenda e a mantivesse no governo ou, pelo menos, próximo do poder. Algo lamentável, mas que, infelizmente, é um mal que acomete toda a política brasileira. Mário era mestre na rapinagem política, adorava a expectativa do dinheiro fácil, na última eleição, a de 2002, havia trabalhado nos corredores sombrios da política nacional, conseguiu com desenvoltura resultados positivos para o PSE, o partido elegeu inclusive dois governadores, três senadores e uns vinte e poucos deputados federais, além de mais de cem deputados estaduais espalhados pelo País, resultado modesto perto dos partidos que lideram a política brasileira, mas que indicava uma projeção no cenário político de um partido novo que ia ganhando força nas urnas, além de que, estas parcas vagas ocupadas por partidários facilitaria a obtenção de muitas vantagens por meio das tramóias diárias, nomeações e acordos vantajosos no Congresso e no Senado. Mário era tido pelo partido como o seu melhor articulador político, negociava com as pessoas mais insólitas e sórdidas que se possa imaginar nos porões ocultos do Brasil, assinava qualquer documento ou contrato sem pestanejar, na boa, por isso não lhe faltava dinheiro de procedência suja e desonesta, muito embora Ana e os familiares, que de nada sabiam, achavam que a sua atividade política não passava de pura assessoria jurídica para o PSE, e que todo o dinheiro que Mário obtinha era fruto de um trabalho honesto e honrado nos cartórios e tribunais.
– Mário, vamos embora?
– Você que sabe, Ana. Eu gosto de ficar com você em qualquer lugar. Quando estou com você, me sinto em paz.
– Mário, estive aqui pensando, acho que estou passando dos limites com esta preocupação com a Mirtes, você tem razão, eu não deveria me prender tanto assim à vida dela, isso não é normal.
– Querida, você é uma pessoa boa, sei que aí dentro deste peito bate um coração de ouro, isto é uma virtude, mas você sabe que eu fiz o que podia para ajudar o Alberto. Da sua irmã eu tenho pena, puxa vida como aquela mulher trabalha, meu Deus! Mas do Alberto, não! Ele não quer melhorar, acha que está tudo bem, é um irresponsável, não passa de um professorzinho bobalhão, se ele estivesse aqui com certeza enterraria a cara em algum livro ensebado em vez de curtir a vida, o mar, a praia e a natureza. Pelo que eu saiba, livros não pagam as contas de todo mês e nem colocam arroz e feijão na mesa de ninguém, principalmente aqueles livros que ele lê, aquele monte de romances, aquela literatura velha e ultrapassada!
A ajuda a que Mário se referia não passava do fato de ele ter convencido o professor Alberto a ser mais um filiado do PSE: “Meu querido Alberto, se você não defender os princípios inerentes à sua atividade profissional, ninguém defenderá. Veja só, você sabe da minha luta pela causa educacional e eu sou advogado, você sendo professor terá mais chance de defender a cultura e a educação, além disso...”, foi assim que Mário acabou convencendo o professor Alberto, que afinal de contas, mesmo não gostando muito de política, era um defensor ferrenho da causa educacional, a filiar-se ao PSE. A ajuda de Mário ao professor fora um presente de grego, lançou uma ovelha aos lobos, porque para o PSE era importante a obtenção de filiados que tivessem participação ativa no campo escolar, já que precisava demonstrar aos seus eleitores um quadro crescente e consolidado no meio educacional e muitos eram os votos obtidos pelos professores que se aventuravam em candidaturas, pois contavam com um enorme prestígio e carinho da sociedade, como se vê a ideologia educacional era apenas o pano de fundo do PSE e o pobre do professor Alberto não sabia disso. Voltando ao barzinho:
– Eu sei que você fez de tudo para ajudar o Alberto, mas ele é um sonhador, Mário, ele não acredita na política como única solução para os problemas educacionais e sociais, nem sequer sabe fazer política – salientou Ana.
– Ana, minha querida, nascemos fazendo política, crescemos fazendo política e morremos fazendo política. Esforcei-me para filiar o Alberto ao PSE e ele sequer compareceu a qualquer reunião do partido até hoje, não procura se engajar, conhecer gente influente, como pode um professor não se interessar pelos problemas relacionados à própria profissão que exerce? Deve ser por este motivo que a educação nacional está uma droga! Ele não corre atrás, não se importa e não liga para nada. Dez por cento do total do que os filiados obtém para os cofres do partido são repassados para os próprios filiados, podem ser contribuição para campanhas, donativos, enfim, qualquer maneira que se encontrar para angariar fundos em prol da legenda também beneficia quem se esforça por ela, entendeu? Agora fica o professor com aquele ridículo ar de intelectual pedante, achando que tudo em política não presta, ele não se ajuda!
– É... Nesse ponto você está certo.
– Não querida, eu estou certo em todos os pontos, ele precisa se esforçar mais, fica a mulher dele se matando de trabalhar, com três crianças para cuidar e ele sonhando, fora do mundo, parece que vive na lua! Ele precisa do partido e não é o partido que precisa dele! Espero que o mundo dê um chacoalhão bem forte naquele cara para ver se ele acorda, não é possível um homem viver daquela forma, se arruinando a cada dia, e tranquilão, falando mole, prestando atenção no emprego correto de verbos e pronomes, com medo de errar na linguagem e errando na vida!
– Mário, desculpe-me por incomodá-lo com problemas alheios durante as nossas férias, prometo a você que não falarei mais sobre o Alberto e a Mirtes até o fim delas. Uma pessoa honesta, bondosa e trabalhadora como você, meu querido, deve aproveitar pelo menos um mês de sossego no ano.
– Ana, amo você! Pode falar do que quiser comigo que eu não ligo, apenas não quero ver sofrimento onde me esforço para semear felicidade e alegria. Aceita mais um chope, antes de irmos embora?
– Sim.
– Liu! Desce mais dois no capricho, por favor!

* * * * * * *

3 - A estranha morte de Alberto

“Eis que surge à minha frente um rio cujas águas cristalinas permitem-me a deslumbrante visão dos peixes que nele vivem. O ambiente é calmo, dócil e agradável. Uma brisa leve acaricia o meu rosto e assanha os meus cabelos. O único som que escuto vem da maestria da natureza que se manifesta no breve sussurro das águas do rio, no vento soprando as folhas das árvores e no lírico e suave cantar dos pássaros. O meu corpo parece flutuar quando os meus pés tocam as folhas frescas e levemente molhadas espalhadas pelo chão da trilha entre as árvores. Eu vago sem rumo à procura, talvez, de mim mesma. Não há razão nestes fatos, porém uma força irresistível me impulsiona a continuar naquele lugar e, novamente, o rio está à minha frente, sento-me na margem e com os pés toco levemente as águas calmas e frias na parte mais rasa, vejo os peixes que nadam tranquilos, como se estivessem brincando no fundo do rio. De repente, em poucos segundos, os peixes sofrem uma estranha metamorfose que vai transformando todos eles em livros, rapidamente as águas límpidas do rio são preenchidas por milhares de brochuras de diversas cores, tamanhos, formatos e espessuras, todas elas fechadas, nenhuma estava aberta, não conseguia saber de quais assuntos tratavam, pois devido à distância em que estavam e à rapidez com que eram levadas pelas águas do rio não era possível ler os títulos impressos nas capas.
Um dos livros foi trazido pela correnteza que o deixou à margem do rio na qual eu estava, este ficou aberto e à disposição de quem quisesse lê-lo. Como só eu estava ali, senti uma enorme curiosidade por saber do que ele se tratava, sobre qual assunto ele teria sido escrito e quem o teria escrito, mas, após este fato, uma pequena embarcação apontou ao longe e foi se aproximando, desviando-me a visão do livro aberto, até que pude notar que havia um homem em pé dentro dela, à distância não pude ver o seu rosto, embora a correnteza do rio continuasse trazendo vagarosamente o barco em minha direção. O barco continuou se aproximando, se aproximando, atracou bem na margem na qual eu estava e, só então, consegui identificar o homem que estava em pé dentro dele, era Alberto. Ele estava radiante, sorridente, trajava-se como um nobre medieval, vinha triunfante, à maneira daqueles antigos desbravadores e heróis que aparecem na hora derradeira para aliviar ou socorrer alguém em desespero. Mesmo achando esquisitas as circunstâncias e os acontecimentos, continuei acompanhando com o olhar atento o que se passava, tudo em Alberto era lindo, envolvente e misterioso, ele ostentava um cajado na mão direita que reluzia uma espécie de feixe de cor esmeralda. Ao descer, já na margem do rio, Alberto observou o pequeno barco, empurrou-o com um dos pés de volta ao destino das águas –– “Agora não vou mais precisar de você” –– dispensou o barco com estas palavras e começou a caminhar na direção do livro aberto, porém, antes que o alcançasse, apareceu à sua frente um outro homem, era Mário que também estava trajado com vestimentas medievais, no entanto, estas de camponês, estava mal-humorado, tinha uma enorme cicatriz no rosto e com uma voz acentuadamente rouca dizia aos gritos:
–– Não se aproxime deste livro, desgraçado! Ele me pertence, ele é meu! Não deixarei ninguém saber o que vai escrito nele, muito menos um facínora como você!
–– Saia do meu caminho, verme! Caso contrário, serei obrigado a exterminá-lo! –– bradou Alberto.
–– Nunca! Jamais desistirei do que me pertence, mesmo que isto me custe a vida! –– arrematou Mário.
Alberto atirou-se sobre Mário e o golpeou com o cajado dourado várias vezes na cabeça. Mário, devido à violência sofrida, caiu desacordado e todo ensanguentado na beira do rio, em seguida, Alberto, aos ponta-pés, o empurou para dentro das águas, a correnteza encarregou-se de levar Mário, provavelmente já morto, embora rapidamente. Eu na simples condição de observadora destes fatos nada podia fazer, tentava andar e as pernas não ajudavam, tentava gritar e a voz não saia, tentava fechar os olhos e as lágrimas não deixavam, tudo era muito estranho para mim. Terminado este fato horripilante, Alberto caminhou até o livro aberto e pôs-se a lê-lo, ao aproximar-me, pude dar alguns passos, fixei meus olhos no título: ANA. Era o meu nome gravado com letras douradas, mas eu nada podia ler do que estava escrito dentro dele, tentava cravar os olhos em suas páginas, enquanto Alberto o segurava e lia-o prazerosamente. Algo inexplicável fazia com que eu não conseguisse entender nenhuma palavra escrita naquelas folhas, apenas Alberto parecia ler e compreender o que o livro ocultava de mim. Após folhear a última página, Alberto fechou o livro e o pôs embaixo do braço direito, tomou minha mão e começou a caminhar me conduzindo na direção do rio, eu não conseguia falar nada, por mais que eu me esforçasse a minha boca não era capaz de pronunciar uma única frase, estava muito exausta e, instintivamente, apenas acompanhava Alberto. Alguns livros que preenchiam o rio submergiram formando uma espécie de ponte, ligando uma margem a outra, pela qual iniciamos a travessia a passos rápidos. Logo que alcançamos a outra margem, vi um grande castelo medieval à nossa frente e nesse instante a minha voz se fez firme e forte:
–– Alberto, o que você fez com o Mário?
–– Eu não fiz nada, Ana. O Mário mereceu o destino que o mundo reservou a ele –– respondeu-me calmamente, como se nada de tão horripilante tivesse acontecido.
–– Você matou o Mário e vem me dizer que não fez nada, você está maluco ou acha que sou boba?
–– Ana, estava escrito. Há fatos na vida que não podemos compreender, mas muitas vezes as mudanças que eles trazem são necessárias para que haja uma reviravolta na ordem das coisas.
–– Onde está a Mirtes? Aonde vamos agora? –– indaguei.
–– Todos estão bem, não se preocupe. Agora vamos para o nosso castelo, a tempestade se aproxima e o perigo que corremos aqui fora é iminente, precisamos encontrar refugio urgente.
Eu não entendia nada, quanto mais tentava encontrar respostas para as perguntas que a minha mente teimava em formular, mais percebia o quão distante estava a realidade, porém continuei seguindo Alberto em direção ao castelo. No caminho florido e arborizado, nuvens cada vez mais escuras cobriam o céu, trovões começaram a ser ouvidos com frequencia, até que depois da longa caminhada chegamos ao castelo, empurramos uma enorme porta de madeira maciça e entramos, depois encostamo-la de forma que se trancasse. Dentro do castelo tudo era deslumbrante demais, vi logo na entrada uma enorme sala cujo teto, bem no centro, ostentava um reluzente lustre de cristal, havia nela também duas poltronas enormes perto de uma lareira acesa, além de uma estante cheia de livros que ocupava uma das paredes por completo, do chão ao teto, uma escada se encarregava de facilitar o alcance dos livros que ficavam na parte superior, Alberto encontrou um espaço vazio na estante e ali pôs o livro que levava o meu nome e voltando-se para mim:
–– Este era o último livro que me faltava. Agora posso morrer em paz.
–– Por que este livro leva o meu nome, Alberto?
                             –– O porquê de muitas coisas na vida não nos pertence, Ana. Você, por exemplo, poderia me dizer por que estamos aqui?
–– Não, não poderia.
–– Então, por que perguntar sobre o que nunca saberemos a resposta?
Estranhei as palavras ditas por Alberto, mas decidi não perguntar nada sobre o que elas significavam, não adiantaria muito. Fui conduzida por ele aos outros aposentos do castelo, um era mais belo que o outro e, apesar do estilo medieval e sombrio do lugar, havia ali algo de familiar que me fascinava. Em um destes aposentos havia uma mesa belíssima à luz de velas que se encontrava à nossa espera, era a sala de jantar. Ceamos divinamente e saboreamos um delicioso vinho francês. Depois disso, Alberto me conduziu a outro aposento do castelo e, ao abrir a porta, apresentou-me o local:
–– Eis o nosso ninho de amor, minha querida. Aqui poderemos descansar sem sermos importunados por ninguém. Por que você esperou tanto tempo para vir até aqui se entregar a mim se eu sempre quis tê-la? –– perguntou-me Alberto acariciando suavemente as minhas mãos.
Olhei para dentro do aposento e confesso que nem nos sonhos poderia imaginar algo tão belo como aquele lugar. Era um quarto de casal lindíssimo, indescritivelmente fascinante, abrigava uma cama de alvura tão sublime que ofuscava minha visão. Havia nele também tapetes, almofadas e adornos que completavam o cenário, tudo impecavelmente limpo. Uma forte luz invadia a grande janela frontal da qual podíamos avistar um vilarejo distante, nenhum outro aposento naquele castelo era tão encantador, tudo era muito especial naquele lugar, firmei meus olhos no rosto de Alberto e voltei às indagações:
–– Alberto, você enlouqueceu? Nós não somos casados! O que você quer comigo neste quarto? Onde estão a Mirtes e o Mário?
–– Já disse que eles estão bem, minha querida. Saiba que aqui, neste lugar só nosso, somos mais casados que nunca. Você veio em busca da realidade que não encontraremos em lugar nenhum que não seja no castelo dos nossos sonhos. E, para finalizar a sua pergunta, eu quero tudo com você.
–– Eu não estou entendendo nada, o que isso significa? –– tremia incomodada e nervosa.
–– Calma, meu amor. Isto significa que eu a amo, sempre vivi perdidamente apaixonado por você e chegou o nosso tão sonhado momento –– respondeu-me Alberto, tirando a camisa tranquilamente.
Não pude esconder que o tórax nu e bem definido de Alberto me excitou, não sei se o clima daquele castelo afetou-me os sentidos ou se foi o vinho, mas o fato é que eu fiquei hipnotizada contemplando a beleza, os pêlos e a maciez do corpo daquele homem à minha frente, esqueci-me naquele instante de tudo o que me ocupava a mente, não podia negar que Alberto era definitivamente meu, como eu jamais havia imaginado, desejava-me por completo. Em seguida, transfixou-me com um olhar de desejo que eu jamais havia presenciado em homem nenhum na minha vida. Ele se aproximou e me abraçou bem forte, beijou-me gostosamente enquanto me despia sem pressa, sem confusão, logo as mãos dele descobriram maliciosamente cada cantinho do meu corpo. Entreguei-me à rigidez daqueles braços másculos e àquele beijo molhado, senti que àquela altura não podia mais resistir à beleza e virilidade de Alberto, um tremor gostoso percorreu todo o meu corpo, seguido por um calor que me fervia até as entranhas. Alberto despiu-se por completo e me possuiu feito um alazão enlouquecido pela fêmea no cio. Que delícia! Eu nunca havia sido tão amorosamente possuída assim em toda a minha vida.
Depois de toda a prazerosa loucura que aconteceu, Alberto beijou-me carinhosamente, levantou-se ainda nu, exibindo-me mais uma vez toda a sua exuberância masculina, caminhou até a janela, olhou para fora, respirou o ar da brisa que levemente entrava no quarto e pôs-se de pé no parapeito:
––Ana, eu amo você, nunca se esqueça disso. Agora que tudo está selado entre nós, cumprirei o que é do meu destino.
Alberto, então, de pronto, sem mais nem menos, atirou-se da janela. O que pude fazer foi apenas gritar desesperada, desconsolada e apaixonada:
–– Alberto, não! Alberto, não! Não faça isso! Alberto! Alberto!
Senti algo estranho, era como se uma mão me chacoalhasse na cama, então fechei os olhos e me virei para o outro lado, debatendo-me.
–– Acorda, Ana, acorda! –– insistia Mário na tentativa de despertar a mulher que, vagarosamente, voltava do estranho sonho:
–– Mário, acho que eu tive um pesadelo.
–– Eu sei que teve, querida, você estava gritando: Alberto! Alberto!
–– Desculpe-me, Mário.
–– Tudo bem. Durante estas últimas três semanas, você se esforçou para não se lembrar deles, talvez isso a tenha incomodado bastante.
–– Eu sonhei que você e o Alberto...
–– Não fale nada agora, esqueça o pesadelo, é só um sonho e nada mais, sei que nada de bom trouxe a você.
Ana se calou e, por um momento, lembrou-se de que nem tudo havia sido ruim. Não conseguia entender qual a razão de ter tido um sonho tão estranho, parecia tão real, algo ficou no ar, mas o conselho do marido era pertinente e preciso para a ocasião, decidiu guardar suas emoções em silêncio.
–– Querido, estou com sede. Você pode me pegar um pouco de água? –– pediu Ana.
Mário se levantou, foi até a cozinha, encheu quase até a borda um copo com água e o trouxe à mulher:
–– Aqui está, Ana. Está se sentindo melhor?
Ana tomou quase toda a água, levantou a cabeça, olhou para o teto, como a colocar a mente em ordem e confortou o marido:
–– Estou, Mário. Foi só um susto, você e o Alberto morriam no meu sonho, ele por último, por isso eu estava gritando o nome dele. Tenho medo de alguns sonhos, ás vezes eles parecem ser tão reais que mexem com a gente. Tenho medo de que sejam prenúncios.
–– Bobagem, querida. Sonhos são apenas frutos do cansaço que impomos à nossa mente, a realidade é bem diferente. Esse negócio de mostrar o futuro é besteira.
–– Não sei, não... uma vez eu tive um sonho muito estranho com uma vizinha, uma colega da escola, neste sonho ela morria. E não é que, em duas semanas, ela adoeceu e morreu mesmo.
–– Coincidência, Ana. Essas coisas acontecem.
–– É, você pode até ter razão, dizem que os sonhos também revelam desejos reprimidos, mas eu acho que muitos deles são avisos que vêm antes que alguma coisa inesperada aconteça.
–– Vamos dormir agora, Ana. Já é madrugada de sábado, vamos descansar para aproveitarmos o último dia destas férias, você está vendo que eu ainda não morri, depois você liga para a Mirtes para saber se o Alberto está vivo também e pronto. Amanhã bem cedo retornaremos a São Paulo.
–– Que horas são, Mário?
Mário acendeu a luz do abajur que ficava ao seu lado na cabeceira da cama, olhou para o relógio e disse:
–– São três e meia. Bons sonhos, querida –– virou-se para o outro lado e dormiu imediatamente.
Ana, envolvida em pensamentos e lembrando-se dos últimos momentos do que havia sonhado, não conseguiu dormir mais. Sentiu vergonha de gostar de recordar os momentos íntimos dela com Alberto no sonho, mas logo aceitou a situação, afinal, como lhe dissera Mário, aquilo tudo fora “só um sonho e nada mais”.

* * * * * * *

4 - A visita indesejável

–– Alô. Quem fala?
–– Oi, Mirtes, tudo bem? Sou eu, sua irmã, Ana.
–– Tudo bem, Ana! E você?
–– Também, mas estou com muita saudade de você. Eu e o Mário já estamos voltando.
–– Que bom! E como foram as férias?
–– Foram ótimas, mas faltou você, o Alberto e as crianças para que fossem melhores ainda. Senti muito a sua ausência, Mirtes. No ano que vem, quem sabe, iremos todos juntos.
–– É, quem sabe ...
–– Mirtes, vocês vão sair hoje?
–– Não. Tenho algumas costuras para fazer e o Alberto está preparando a programação para as aulas que começam amanhã.
–– Atrapalharia se eu e o Mário fôssemos visitá-los à tarde, mana? 
–– Claro que não, minha irmã! Vocês são sempre bem-vindos.
–– Combinado, à tarde estaremos aí. Não vejo a hora de ver o Betinho. Depois a gente se fala mais. Beijo!
–– Outro!
Ana desligou o celular e guardou na bolsa, enquanto Mário dirigia com a atenção redobrada nas curvas da descida da serra do mar. O tempo estava bom naquela manhã de domingo, o céu azul, quase sem nuvens, anunciava mais um dia de calor intenso. Ana pegou um CD que havia trazido para ouvir no carro, uma coletânea de músicas italianas antigas, e o pôs para tocar:
–– Adoro músicas italianas, elas são tão belas, têm o poder de nos acalmar, falam com ternura sobre o amor.
–– E se falarem de amor acompanhadas por um bom vinho e uma macarronada à bolonhesa, melhor ainda –– brincou ao volante o cuidadoso motorista.
–– Mário, aonde iremos nas próximas férias?
–– Não sei, Ana. Boa pergunta. Eu estou com vontade de ir novamente para algum lugar do Nordeste, adoro as praias do litoral nordestino. Podemos ir para Porto de Galinhas, Porto Seguro, Fernando de Noronha . . .
–– Que tal se formos para Maceió? –– sugeriu Ana –– Faz anos que não vamos para lá. Quando nos casamos íamos todo ano, lembra? Fomos uns três anos seguidos de tanto que gostamos.
–– Ótima idéia! Gostei! Nós nos divertimos à beça quando estivemos em Maceió, lembro-me dos passeios de jangada na praia da Pajuçara, dos mergulhos na praia do Gunga e das visitas que fizemos de escuna às ilhas, só não lembro se eram sete ou nove, tanto faz, todas elas eram lindas, e aquela tapioquinha de coco com doce de leite devorada toda noite na praia hein, Ana? –– Mário se recordava das delícias de Maceió, quando de súbito mudou os rumos da conversa –– E lá na sua irmã, como eles estão? Você ainda não me contou nada.
–– A Mirtes disse que está tudo bem. O sonho que tive foi fruto da minha imaginação, eu estava me sentindo muito cansada naquele dia.
–– É, eu sabia. O Alberto morto! Só se o mundo acabar em barrancos para que ele morra encostado neles –– ironizou Mário.
Enquanto isso, no Ipiranga o primeiro domingo de fevereiro, véspera de ínicio do ano letivo, estava agitado, Alberto preparava a programação escolar para o primeiro semestre, enquanto planejava as apresentações às novas turmas de alunos. Mesmo entretido em anotações e planilhas, o professor ouviu que a esposa havia atendido alguém ao telefone, não tinha por hábito perguntar quem era, sabia que quase sempre se tratava de assuntos corriqueiros de Mirtes, na verdade, a curiosidade nunca foi o seu forte, porém, desta vez, algo lhe chamou a atenção, a mulher mais que rapidamente começou a ajeitar a casa como se fosse receber alguma visita, parou de escrever, mirou a esposa por sobre as lentes dos óculos, como de costume, e indagou:
–– Quem era, Mirtes?
–– A Ana, está voltando.
–– Que bom! Como ela está?
–– Está bem, virá aqui hoje, aliás, virão aqui hoje ela e o Mário.
–– O Mário? –– desanimou-se Alberto.
–– Sim, algum problema? –– perguntou Mirtes, estranhando o comportamento do marido.
––Não, claro que não.
O professor se calou e, inevitavelmente, pensou na indesejável visita do cunhado arrogante: “Como é desagradável esse Mário. Que lástima!” – suspirava Alberto –– “Provavelmente será mais uma daquelas tardes ouvindo conselhos de como se dar bem na vida e sobre o trajeto mais curto para o sucesso político, esse Mário é definitivamente um carinha metido à besta”. Alberto se culpava por ter se filiado ao PSE, sabia que só aceitou a filiação porque Mário o enchia o saco toda vez que o via, pensou que talvez desta forma o cunhado parasse de pentelhá-lo, qual nada, foi coisa pior, agora Mário contava quase tudo o que acontecia nas reuniões do partido. O professor sabia que na ocasião da filiação ao PSE não havia escolha, se não tivesse se filiado ao PSE seria visto pelos familiares como um covarde ou um homem que vive às custas de favores alheios, sem se importar mesmo com ao assuntos relativos à sua profissão, na certa seria a oportunidade que Mário teria para falar mal dele a todos. “Estou com vontade de dizer umas poucas e boas verdades para esse pequeno aspirante a corrupto” –– pensava o professor ingenuamente sem saber que o suposto aspirante era na verdade mestre em matéria de corrupção –– “mas como fazê-lo sem magoar a Mirtes e a Ana, principalmente a Ana, ela não merece isso, já lhe basta o marido que tem” –– concluiu.
O professor sabia que Mário era um sujeito que não media esforços ou consequências quando o assunto era se dar bem, fosse como fosse. Sabia também que o cunhado era um profissional desqualificado, um verdadeiro picareta, em algumas oportunidades já o havia questionado sobre alguns assuntos jurídicos básicos que quase todo mundo sabe e notara como o pseudo-advogado andava desapercebido dos conhecimentos jurídicos mínimos a qualquer bacharel de direito recém lançado no mercado das leis, todas as vezes vira Mário se esquivando: “Estudarei melhor o assunto, pois não tenho os artigos e doutrinas em mãos agora, depois lhe darei uma orientação mais elaborada, Alberto”, e até hoje, depois de anos, o professor esperava pelas singelas respostas. “Bem, não tenho saída, o jeito é esperar pela visita” – entregou-se Alberto –– “afinal de contas eu adoro a Ana e todos nesta casa gostam dela também”.
Naquele domingo Mirtes preparou o almoço: a tradicional macarronada paulistana acompanhada por suculentas almôndegas, a refeição logo fez sucesso à mesa, todos se deliciavam, enquanto Betinho se lambuzava inteiro nem aí para os apelos da mãe:
–– Filho, deixa a mamãe dar o macarrão para você – Mirtes tentava evitar o inevitável.
–– “Dessa” mamãe, “dessa” mamãe, “dessa” que eu como assim...” –– insistia o pequeno lambuzado.
–– Deixe-o, Mirtes. Ele vai se virando e logo aprende a comer sozinho, toda criança aprende assim –– manifestou-se o professor.
–– É, eu sei. Mas o menino está sujando a casa inteira, fora as roupas, o cabelo, mais tarde precisarei dar um banho nele.
–– Pode deixar, Mirtes. Eu darei um jeito em tudo.
 Após o almoço, Mirtes voltou à oficina, tinha ainda muito a coser, Lívia foi ajudá-la um pouco, Rafael preferiu ir para o quarto ver televisão e o professor ficou na companhia da sujeira dos pratos, talheres, panelas e mesa, além da estressante missão de vigiar o malino Betinho.
As horas se passaram rapidamente e por volta das quatro horas da tarde, escutou-se o som estridente e inconfundível: o “blim-blom” da campainha, Betinho passou correndo em direção à porta, quase atropelando o pai que a abria, gritando:
–– Tia Anaaaaaaaa !
A tia que já entrava na casa carregando uma grande caixa de presente, abraçou o pequenino de forma  carinhosa, e lhe disse:
–– Oi, meu querido, como você está, hein? A tia estava morrendo de saudade de você, olha o que a tia trouxe!
–– Um “pesente”, “bigado” tia! –– agradeceu o menino, feliz da vida.
–– Não tem de que, espero que você brinque bastante com ele até gastar as rodas, querido. Agora, abra o presente e veja se gostou.
O menino desembrulhou imediatamente a grande caixa e mostrou em seguida um farto sorriso, um brilho nos olhos arregalados, ao ver o belo caminhão basculante movido por controle remoto. Rafael e Lívia deixaram a televisão e a revista de fofocas, respectivamente, de lado para cumprimentar e recepcionar os tios. Veio, então, Mirtes, um beijo e um abraço apertado na irmã e no cunhado, e, por fim, Alberto: 
–– Olá, Ana! Tudo bem? –– o professor cumprimentou a cunhada.
–– Tudo bem Alberto, melhor agora que vejo vocês!
–– E você como vai, Mário? –– Alberto estendeu a mão ao grisalho cidadão.
–– Tudo bem, Alberto! Gostaria de conversar com você sobre algumas coisas de nosso interesse, pode ser?
–– Sim, claro. –– Alberto não tinha mais como fugir da previsível tarde que tanto lastimava.
 Ana, Mirtes e as crianças ficaram na sala, entretidos nos mais variados assuntos, vendo as fotografia das férias de Ana e Mário em Ubatuba. Enquanto isso, Alberto e Mário se dirigiram à cozinha e sentaram-se à mesa:
–– Aceita uma cerveja, Mário?
–– Aceito.
Alberto se levantou da mesa, abriu a geladeira e retirou uma latinha de cerveja das que guardava para eventuais visitas, em seguida, pegou um copo com água para beber, raramente consumia bebidas alcoólicas, voltou à mesa e sentou-se novamente, Mário iniciou a conversa:
–– Alberto, como é que vocês estão?
–– Estamos bem, Mário.
–– A Ana tem andado muito preocupada com vocês, há noites em que ela nem consegue dormir direito pensando em vocês.
–– Não há motivo –– afirmou o professor.
–– Claro que há motivo, cara! Vocês estão passando por sérios problemas financeiros, não é fácil e nós sabemos disso. As crianças precisam de várias coisas o tempo todo, se eu e a Ana que não temos filhos temos gastos demasiados, pois tudo está pela hora da morte, imagine você e a Mirtes com três filhos para criar. Alberto, você precisa fazer alguma coisa, não dá para esperar mais, as coisas estão cada dia mais difíceis de se conseguir, todo mundo anda à caça de passarinho verde e ninguém acha. Eu quero ajudá-lo, cara!
–– Mário, eu vou ser bem franco com você, pode ser?
–– Claro, Alberto. Eu estou aqui para ouvir você.
–– Quanto à questão financeira, realmente, aqui em casa temos tido muita preocupação, muitas dificuldades, não quero desesperar a Mirtes me lamentando, mas o que posso fazer? Eu trabalho e agora ela também, resta-nos agradecer por estarmos com saúde, infelizmente a situação econômica anda difícil para quase todo mundo.
–– Mas você não deve se conformar com isso, meu! –– disse-lhe Mário e continuou –– Este ano haverá eleições municipais, parece-me que a atual administração está demorando demais para aceitar o PSE na coalizão partidária que fará em São Paulo, estamos conversando com a oposição, o partido não pode perder tempo, além do mais, acredito que a atual administração vai perder a eleição para prefeito na Capital e em outras grandes cidades paulistas, é praticamente certo que o PSE crescerá muito se isso se confirmar nas urnas.  Haverá várias reuniões partidárias e eu gostaria muito que você fosse a pelo menos algumas delas comigo, você precisa se enturmar conosco, Alberto.
“Pronto, estava até estranhando que este cara não estivesse ainda falando sobre política. Que cara-de-pau, afirma que o partido troca de lado, dependendo do que for mais vantajoso, sem se sentir nem um pouco envergonhado com isso” –– meditava Alberto, espantado com a naturalidade com que Mário divulgava as artimanhas da política nacional, mesmo assim tentou se esquivar:
–– Talvez eu vá a alguma delas, mas este ano andarei muito ocupado com assuntos da escola. Sabe como é, não sobra muito tempo.
–– Alberto, está na hora de você se mexer, meu! Você tem que aproveitar todas as chances que lhe aparecerem, não dá para esperar mais, entendeu? Estou disposto a ajudá-lo, mas você precisa fazer  a sua parte também, entenda que trancado entre quatro paredes lendo ou dando aulas você nunca sairá dessa situação, o governo atual tem a mesma política que tinha o governo anterior quanto ao funcionalismo público, qual seja, esmagar os salários ao máximo, vocês são vistos como os grandes vilões da economia nacional, o funcionalismo público, seja em qual área for, é e será durante anos o famoso boi de piranha para despistar as falcatruas e roubalheiras dos nossos governantes. Você que é professor está sendo afetado por isso sem enxergar. Será que é tão difícil perceber tudo isso, cara!
–– Obrigado pela preocupação, Mário! Mas, se a sua ajuda for esta, eu a dispenso! Volto a afirmar que política não me interessa diretamente e nem será o caminho para a resolução dos meus problemas, sinto muito! ­­Política no Brasil deveria significar trabalho e não meio de vida, é por isso que o País vive eternamente arruinado! –– enfezou-se o professor, respondendo ao cunhado com estas palavras secas e ásperas.
–– Desisto, Alberto. Você tem o endereço e o telefone da sede do PSE, quando mudar de idéia ligue ou apareça por lá. Estaremos sempre de portas abertas –– Mário encerrou a conversa, na certa ofendido pela acolhida pouco amistosa que Alberto deu às suas idéias, terminou a cerveja e voltou para a sala. O professor ainda ficou na cozinha, balançando a cabeça, como se não acreditasse nas coisas que ocorrem na política nacional ou tentando pôr as idéias no lugar.
As mulheres e as crianças ainda conversavam ou brincavam na sala, Mário tentou entrar no clima distraindo-se com a diversão do caminhoneiro Betinho. A visita ainda demorou-se por mais uma hora, houve tempo suficiente para o café da tarde e para acalmar os ânimos de Mário e Alberto que, diplomaticamente, ainda se embrenharam por outros enredos. Antes que os ponteiros dos relógios em linha reta acusassem seis horas da tarde, Mário e Ana despediram-se de todos e retomaram o curso rumo ao rico bairro dos Jardins, centro da capital paulista, onde moravam. Quando passavam pela Avenida Nazareth, bem na frente do Museu do Ipiranga, Mário, que dirigia notadamente nervoso e esbaforido, iniciou sua confissão à esposa:
–– Ana, eu adoro passar por aqui, o jardim deste museu é tão bonito, ele faz com que eu me recorde de coisas boas, como quando eu estudei aqui no Ipiranga. É bom passar em frente a um lugar como este quando se está com a cabeça prestes a explodir de ver a imbecilidade de um homem.
Ana fingiu não entender o que ou de quem o marido estava falando e, para despistar a conversa, emendou:
–– Eu também gosto daqui, nasci aqui perto, logo ali na Vila Prudente, mas morei neste bairro por algum tempo, vivi dias felizes no Ipiranga. Gosto de morar nos Jardins, é mais chique, mais sofisticado, mas acho que prefiro o Ipiranga, é um lugar mais a minha cara, mais simples, humano, sei lá.
–– Ana, mudando de assunto, eu nunca mais vou falar de política com o Alberto, nem vou mover um dedo sequer para ajudá-lo, ele se quiser que me procure.
–– O que aconteceu, Mário? –– indagou Ana como se não tivesse percebido o clima pesado entre o marido e o cunhado na casa da irmã, na intenção de pôr panos quentes na confusão.
–– Eu me dispus a ajudar o Alberto, queria vê-lo numa melhor de verdade e o cara dispensou o meu auxílio! Puxa vida, Ana! Eu não sabia que esse professorzinho de meia tigela era tão orgulhoso. Foi tão áspero comigo que tive vontade de ir embora imediatamente, só não agi assim para não estragar a visita que você teve tanto gosto em fazer e em respeito à sua irmã e às crianças que estavam contentes.
–– Você sabe que não é normal que o Alberto tome estas atitudes, ele é um homem super-educado, e eu já havia dito a você que o Alberto não se interessa por política, já há problemas demais na vida dele, não devemos piorar as coisas, Mário. Por que você insistiu? O Alberto é um sonhador, eu sei que viver assim é perigoso demais no mundo em que estamos, não há mais espaço para pessoas que vivam desta forma, elas são engolidas, são tragadas e expurgadas pelo forte poder do dinheiro. Podemos até não concordar com o Alberto, mas devemos respeitar a forma que ele pensa e como ele age, não há lugar para ele no disputado cenário político e para ser sincera, acho que nem para você. Quase todo o campo político está tomado por pessoas interesseiras, existem raras exceções, você é uma delas, é um exemplo, mas todo mundo sabe que a maior parte dos políticos é composta por gente fria e calculista.
–– Ana, não adianta tentar melhorar as coisas, eu não quero mais saber deste cara, tá bem? A Mirtes e as crianças que me desculpem, mas eu desisto. Se você quiser ajudá-los da sua maneira, tudo bem. Mas, a partir de agora o Alberto, o irresponsável do Alberto, que me esqueça! Só irei visitá-lo no hospital ou no cemitério, não quero mais conversa com ele –– dramatizou Mário o máximo que pôde.
–– Tudo bem, você que sabe. Eu posso até não concordar com você, mas respeitarei a sua maneira de pensar, como respeito a do Alberto também. Vocês que se entendam. –– finalizou a conversa Ana, sabendo que o drama de Mário era passageiro, estava tomado de fúria e o sangue italiano, que sempre aparece nestes momentos, logo lhe baixaria da cachola, então ele se esqueceria o que havia ocorrido e tudo estaria bem novamente entre ele e Alberto.
Será?

* * * * * * *

5 - Rato

“A minha irmã e o meu cunhado vêm nos visitar e são tratados dessa forma? A Ana trouxe algumas calças com pequenos defeitos para que eu as consertasse e me pagou adiantado quase o preço que se pagaria por calças novas, eles só querem nos ajudar e não merecem a sua atitude desequilibrada e irracional, Alberto!” –– teve mais –– “caso você não queira se envolver com assuntos políticos ou quaisquer outros que venham do Mário, deixe pelo menos de ser grosseiro, faça como qualquer pessoa educada costuma fazer: mude de assunto, ouviu? Orgulhosão!”
Enquanto o professor Alberto caminhava pelas calçadas intermináveis da rua Bom Pastor, rumando para o que seria o primeiro dia de aula do ano, vinha-lhe à mente a dura reprimenda que Mirtes lhe dera na noite passada, o motivo fora a conversa franca que ele tivera com o cunhado Mário naquela fatídica tarde de domingo, “Eu já não aguentava mais ouvir o Mário contando vantagens e tentando me empurrar goela abaixo a política suja que ele pratica, mas talvez algum dia –– pensava o professor –– eu aprenda que nem tudo deve ser dito às mulheres, principalmente assuntos de homem para homem, elas nunca entendem”. Realmente, em relação ao assunto Mário, Mirtes não o compreendera, ela havia tomado partido em favor do cunhado. As palavras da esposa ficarão gravadas na mente de Alberto por algum tempo. Quando Mirtes expunha algo que a desagradava, sabia ser bastante sincera e emotiva, percebia-se claramente que tudo o que ela falava vinha-lhe do coração, suas palavras tinham o efeito de uma sentença irrecorrível e Alberto fora condenado duramente por todos os acontecimentos ruins que ocorreram no dia anterior, ele preferiria olvidá-los, no entanto, a consciência pesada e a lembrança da voz irada de Mirtes não permitiam que isso acontecesse.
Alberto no caminho até a escola pesava tudo o que Mirtes havia dito, compreendia todos os motivos que levaram a mulher a censurá-lo daquela forma, ele bem que poderia ter poupado o Mário de sinceridade tão acentuada para não aborrecê-la e, ainda, lembrava-se de Ana, a cunhada tão querida e estimada por ele, ela certamente também estaria muito magoada –– “afinal de contas, querendo ou não, aquele pulha do Mário é o marido dela”, lamentava mentalmente Alberto. Na verdade, o único fato que incomodava o professor era a culpa que sentia por ter magoado estas duas mulheres –– “Mas não deu para segurar, o copo já estava transbordando, se pudesse voltar atrás, eu não voltaria”. Se a ira de Mirtes e o eventual aborrecimento de Ana eram o preço a ser pago pela sinceridade com que ele agira em relação àquele cunhado pernicioso, para Alberto estava valendo a pena arcar com a demanda. Estava feito, não tinha mais volta. Hoje é outro dia, o que passou, passou. Há determinadas coisas que devem ser colocadas para fora na hora certa e Alberto sabia que não dava para esperar mais para mostrar ao cunhado o valor da dignidade e da honestidade frente a qualquer trocado surrupiado da população brasileira tão sofrida e humilhada, “Vou esperar a poeira baixar para me desvincular deste criadouro de corruptos chamado PSE, só não faço isso agora para não piorar as coisas em família, imagine só, o pensamento ideológico do partido é: o nosso interesse acima de tudo. E eu nessa? De jeito nenhum. Estou fora. Que lastima!” –– refletia o consciente mestre.
Chegou a hora de abandonar as lembranças dos problemas domésticos e familiares, o professor adentrava agora os portões da escola, seis ou sete quadras separavam sua casa do posto de trabalho, Alberto fazia este trajeto todos os dias a pé para economizar o dinheiro do ônibus. Não via a hora de trabalhar, na certa ali na escola uma espécie de bálsamo devolveria a ele a calma e o equilíbrio de que tanto precisava. O professor pelo jeito não havia perdido o hábito que mantinha fazia anos: no seu turno de trabalho, era sempre o primeiro a chegar à escola e o último a sair dela, naquele primeiro dia de aula do ano, mantendo a tradição, chegou bem cedo, ainda faltavam duas horas para o início das aulas que se daria às treze horas –– “aproveitarei o tempo que tenho para organizar os papéis, os fichários e verificar as relações com os nomes dos alunos e respectivas classes que formarão as turmas deste ano” –– planejou.
Até o início da jornada houve tempo para que Alberto ainda conversasse com o diretor, com o porteiro, com os faxineiros e com alguns alunos conhecidos que haviam se transferido para o período da manhã, todo mundo naquela escola gostava muito dele. Praticamente todos os dias letivos do ano eram assim, Alberto conversava e ouvia a todos, se interessava de verdade pelos assuntos que surgiam aleatoriamente, “chegar cedo é o segredo, sobra-me tempo para fazer muitas coisas, adoro viver a vida escolar” –– refletia enquanto abria papéis e mais papéis sobre uma grande mesa na sala dos professores onde aguardava pela sirene que indicaria o início da primeira aula. Nada felicitava mais Alberto que as salas de aula, as correções de provas, o preparo das matérias, o esclarecimento das dúvidas dos alunos, enfim, o que mais gostava de fazer na vida era praticar a atividade educativa, nascera para aquilo e certamente naquilo morreria. As aulas que ministrava aconteciam nos períodos vespertino e noturno, aproveitava os intervalos maiores dentro destes períodos para ler os jornais do dia e as revistas da semana, trazia também dentro da sua pasta, junto a fichários e outros pertences, sempre uns dois ou três livros de escritores nacionais ou estrangeiros, era um assíduo frequentador de livrarias e sebos, adorava os grandes escritores nacionais e portugueses e as belas obras escritas por eles, gosta de Machado de Assis, Eça de Queirós, Saramago, Drummond, Bandeira, Lima Barreto, Camões, Pessoa e outros tantos, mas não desprezava a literatura estrangeira, era comum vê-lo caminhando vagarosamente pelos corredores da escola concentrado na leitura de Dostoiévski, Tolstoi, Oscar Wilde, Kafka, George Orwel, Rimbaud, Hemingway, entre outros. Formado em Letras havia mais de quinze anos, Alberto era um professor maduro, contava com trinta e nove anos de idade dos quais quinze havia passado dentro daquela mesma escola pública. Acompanhara durante todos esses anos a formação de várias turmas de alunos e as dificuldades que a escola enfrentava para manter um ensino minimamente digno, muitos eram os professores que passavam por ali por pouco tempo, logo se cansavam da falta de estrutura da educação pública e migravam para outros espaços educacionais, para os professores que ali permaneciam era praticamente uma missão continuar lecionando naquela escola, a falta de condições mínimas para a manutenção do ensino era gritante, por vezes faltava papel higiênico nos banheiros, material de limpeza, giz, canetas, e outras coisas, constantemente os professores faziam “vaquinhas” para comprar o que faltava na escola, entra ano e sai ano, entra governo e sai governo, mas o nível de interesse dos governantes pela restauração do ensino público é sempre o mesmo, ou seja, nenhum, “talvez no dia em que um educador for governador do Estado, quem sabe haverá mais cuidado com a atividade educacional e tudo será melhor para esta e para outras escolas públicas. Ah! Que bobagem minha, depositar esperança em políticos” –– viajava, mas acordava para a realidade o professor Alberto sempre que se lembrava das condições precárias da educação pública. Mesmo com todas estas dificuldades, naquela escola, o diretor e os professores firmaram um pacto para que prevalecesse o máximo de esforço conjunto no sentido de que os alunos dali saíssem sabendo pelo menos ler e escrever decentemente, além de terem os mínimos conhecimentos necessários para a vida profissional e familiar.
Alberto teve muitas chances de sair do ensino público, eram muitos os convites de colegas educadores que se propunham a indicá-lo para grandes escolas particulares da região, mas algo o prendia àquele local, quando olhava para os olhos de cada aluno naquela escola sentia que a missão era árdua, mas que valia a pena continuar ali, ele era mais que um professor para aqueles jovens, era também um amigo, psicólogo, conselheiro, assistente social e, muitas vezes, irmão ou familiar que muitos daqueles meninos e meninas não tinham. Dentro da escola, Alberto isolava-se de todos os problemas do mundo, imaginava apenas como poderia contribuir para o futuro daquelas jovens mentes estudantis.
Enfim as duas horas se passaram desde que o professor chegou à escola e a sirene indicava o início das aulas. Alberto caminhou pelo corredor e adentrou a sala de aula para se apresentar à sua primeira turma de alunos daquele ano, jovens na faixa etária média de treze ou quatorze anos que cursavam a penúltima série do ensino fundamental, o professor colocou seus pertences sobre a mesa e de imediato deu início às apresentações e à aula:
–– Boa tarde! –– alguns alunos corresponderam ao cumprimento, outros nem o notaram, o mestre prosseguiu –– Eu me chamo Alberto, serei este ano o professor de Gramática e Literatura de vocês. Escreverei agora no quadro negro a programação escolar que seguiremos durante este ano, é importante que vocês tomem nota de tudo o que for escrito, será necessário para que todos se preparem para um melhor aproveitamento deste curso, depois conversaremos um pouco mais.
O professor se dirigiu ao quadro, apagou as anotações da aula de Matemática que a professora Helena havia ministrado no período da manhã, pegou um pedaço de giz que estava no aparador da lousa e passou rapidamente a escrever a programação, enquanto alguns alunos copiavam-na em seus cadernos e fichários, outros ainda conversavam, o mestre, voltando-se para a classe, pediu silêncio, esperou mais algum tempo para que todos tomassem nota, depois reiniciou as apresentações:
–– Para os alunos que já me conhecem, prazer em revê-los. Para os alunos que ainda não me conhecem, prazer em conhecê-los. Explicarei agora o método de trabalho que costumo adotar em sala de aula. Eu gosto de ensinar conjuntamente Literatura e Gramática, é lógico que há assuntos diretamente pertinentes a cada matéria, caso contrário não haveria distinção entre elas, porém faz parte da prática moderna o emprego destas duas matérias em conjunto, entendo que para que este processo se torne construtivo e agradável para todos nós a participação direta e o interesse de vocês são fundamentais, por isso quero que todos participem ativamente das minhas aulas, ou melhor, das nossas aulas, todos os anos aprendo muito com vocês também, sendo assim, qualquer um poderá perguntar o que quiser, mesmo que seja sobre assuntos que não façam parte diretamente das nossas matérias, não haverá perguntas que não merecerão atenção e respeito de minha parte e dos colegas de classe, todos se respeitarão e compreenderão que as dúvidas são comuns a qualquer pessoa, cada questão que surgir deverá ser solucionada sem censura e sem chateação. Iniciaremos este primeiro bimestre estudando e comentando a obra de um grande escritor brasileiro que infelizmente nos deixou há poucos anos: Jorge Amado. Quem aqui já leu “Capitães da areia”? –– como não houvera resposta à pergunta, o mestre continuou –– é muito importante que todos vocês leiam esta obra, principalmente na idade em que estão agora, a maior parte dos personagens de “Capitães da areia” tem quase a mesma idade que vocês, eu recomendo esta leitura a todos que tiverem o privilégio de ter o livro em mãos, ele é belíssimo e fala de um tema, infelizmente, bem atual: crianças maltratadas e abandonadas. Eu vasculhei a biblioteca da nossa região durante as férias e há cinco livros destes disponíveis nela, mas aos que quiserem comprá-lo eu recomendo que o façam, zelem por ele com carinho, guardem-no para sempre pelo menos nos seus corações e mentes, compreendam o valor que nós temos, sejamos amanhã padres, professores, sindicalistas ou pintores, o importante é descobrir o que todos trazemos de bom dentro de nossos corações, não importa a condição social, financeira ou familiar na qual estejamos, carregamos os nossos medos, os nossos anseios e as nossas cruzes, ninguém nasce para o mal, as contrariedades da vida, por vezes, tornam crianças talentosas e sensíveis, como vocês são, em monstros na visão preconceituosa da nossa sociedade doente, deem às crianças abandonadas e desamparadas uma oportunidade e certamente teremos cidadãos de verdade, muito melhores que essa gente de colarinho branco que anda por aí roubando à luz do dia, este livro fala sobre isso.  No final do bimestre farei uma reunião com os alunos que leram “Capitães da areia”, valerá um ponto a mais na média. Estamos combinados? Alguma pergunta?
Um aluno que se sentava na última mesa da última fileira da sala pediu licença e indagou:
–– Professor, os seus alunos das outras classes não esgotarão a quantidade de livros que estão disponíveis na biblioteca da região?
Alberto apreciou a pergunta, enfim, era o primeiro questionamento que aquela classe fazia, um aluno já havia se interessado pela leitura, era um bom indício:
–– Como você se chama, jovem?
–– Cléverson, professor.
–– Muito bem, Cléverson. A sua pergunta é muito pertinente, eu havia me esquecido deste detalhe. Para cada classe eu escolhi uma obra diferente, um escritor diferente, vocês serão os únicos alunos desta escola neste bimestre que lerão “Capitães da areia”, os alunos das outras classes lerão em outra oportunidade. Espero que nenhum outro professor em alguma outra escola da região tenha a mesma idéia que eu tive de aplicar avaliação sobre este livro. Mas, se vocês não conseguirem o livro na biblioteca, façam um esforço para comprá-lo, ele é muito interessante. Mais alguma pergunta? –– como os alunos nada mais perguntaram, o mestre prosseguiu:
–– Muito bem! Para encerrarmos este nosso primeiro bate-papo, gostaria de conhecê-los melhor. Costumo guardar os nomes de alguns alunos, mas eu afirmo que todos vocês, mesmo aqueles que eu não lembrar o nome durante o ano letivo, são muito importantes para mim, por isso quero que cada um se apresente, quero conversar um pouco mais com vocês.
O professor começou a caminhar pelos corredores que formavam-se pela separação das mesas perguntado aos alunos os nomes de quem ele ainda não conhecia e reencontrando outros aos quais já havia dado aulas em anos anteriores, indagava aos alunos também curiosidade sobre férias, família e comportamento adolescente, desta maneira o mestre familiarizava-se com a classe, ganhava a confiança de todos e fazia uma análise silenciosa do nível de português dos alunos. Quando chegou à última mesa da sala de aula, deparou-se com o menino que havia feito a única pergunta daquele dia. Só então, pôde perceber detalhes que não havia observado antes, o menino era bem magro e de pequena estatura, mesmo sentado era visível a sua fragilidade, os cabelos lisos e loiros combinavam com algumas sardas que se apresentavam em seu rosto, vestia-se com uma camisa roxa furada, corroída na gola e muito surrada, a calça era larga demais para um corpo tão franzino, os sapatos do pobre menino estavam muito gastos e remendados com uma espécie de fita prateada que destoava da cor do tecido. Alberto percebeu então que a pergunta do menino era mais pertinente do que ele havia imaginado e que deveria ter tido um pouco mais de cuidado em relação à resposta que havia dado ao menino que provavelmente não teria condições financeiras para comprar um caderno sequer, quanto mais um romance, tido como artigo de luxo no Brasil. O garoto parecia estar envergonhado quando o professor aproximou-se dele, com certeza este aluno preferia não aparecer, sentia-se notadamente inferiorizado em relação aos demais, como se fosse um elemento estranho no grupo de alunos, o professor logo percebeu que era por isso que o jovem se sentava no último lugar da sala de aula, o mestre sabia que nenhum aluno ali era muito abastado, mas nenhum lhe parecia ser tão desprovido de recursos quanto aquele menino. Alberto havia se esquecido do nome do jovem aluno, desculpou-se e perguntou-lhe pelo nome novamente, porém antes que o menino respondesse a pergunta do mestre, a conversa foi de pronto interrompida por uma voz que ressoou bem alto nas quatro paredes daquela sala de aula:
–– RAAAAAAATO!!!
Seguiu-se um brevíssimo silêncio interrompido por gargalhadas estridentes e sádicas que tomaram conta dos alunos daquela sala, apenas o menino e o professor se mantiveram sérios e surpresos, a classe inteira ria da brincadeira sem graça, um dos alunos, que também ria, explicou ao professor que “rato” era o apelido do menino. Esse tipo de brincadeira, qual seja, humilhar um colega de classe por questões físicas, mentais, estéticas ou, como neste caso, econômicas, para a maior parte dos adolescentes em idade escolar é prática constante e comum ao arrepio dos valores educacionais e de convivência pregados exaustivamente pelos mestres nas salas de aula. Um fato ridículo e horrendo como este não poderia passar em vão diante do senso humanitário e corretivo de um professor como Alberto e, imediatamente, o valoroso mestre interveio na farra geral, irritadíssimo com a atitude da classe. Ele se dirigiu asperamente aos alunos nestes termos:
–– Gostaria que alguém me explicasse melhor o motivo das gargalhadas, há algum palhaço aqui, hein? –– os alunos entenderam o recado e ficaram repentinamente mudos e de olhos arregalados, o mestre continuou –– se vocês não entenderam, eu fiz uma pergunta ao Cléverson, já me lembrei do nome dele, e convinha que ele mesmo a respondesse. Agora ficam vocês hostilizando um colega de classe e rindo-se dele sem ter motivos, continuem rindo de um amigo de escola e um dia vocês verão que a vida se encarregará de rir de vocês também. Aprendam a respeitar se querem respeito, todos vocês estão aqui para aprender, com o objetivo de serem cidadãos completos e não meias verdades sociais, ou pior, bestas humanas como este País está cansado de formar, não importa o rótulo ou a condição da embalagem, o importante é o conteúdo, não quero que vocês amanhã se arrependam do mal que vocês mesmos provocaram a si próprios. Desculpem-me pela franqueza, mas exijo respeito, esta é a palavra, ou melhor, a prática que anda em extinção na nossa sociedade, eu quero que vocês utilizem-na, guardem-na para um futuro melhor, levem-na para os seus filhos daqui a alguns anos, talvez eles possam ter um futuro melhor que o nosso, talvez algum dia a palavra respeito substitua por completo a palavra intolerância e só então faremos deste mundo um lugar melhor para nós mesmos. A partir de agora, meus atentos alunos, exijo que vocês chamem o nosso amigo pelo nome dele e não por apelidos pejorativos, depreciativos e preconceituosos. Pode ser que estas palavras não sejam compreendidas por todos ou que vocês achem-nas ásperas demais, mas certamente um dia todos aqui se lembrarão delas. Eu quero que vocês se tornem pessoas de verdade. Eu acredito muito em vocês, caso contrário não estaria aqui gastando saliva, dando aulas e tentando passar o pouco conhecimento que tenho, porque a verdadeira educação quem dá é a vida e eu quero que ela dê a melhor educação que houver para todos, –– houve um baixar de olhos geral e estratégico dos alunos e foi aí que o professor percebeu que, apesar da atitude enérgica, havia conquistado o respeito e a consciência dos alunos –– posso continuar a aula? –– como o silêncio continuou prevalecendo, o mestre reiniciou o diálogo:
–– Como vai, Cléverson?
–– Tudo bem, professor –– respondeu o menino quase chorando, estava assustado com tudo o que havia acontecido.
–– Muito bem! –– Alberto dirigiu o seu olhar novamente à classe –– Todos aqui sabem que o nome dele é Cléverson, nós não ganharemos nada em lugar nenhum hostilizando o nosso semelhante, principalmente pessoas queridas com as quais convivemos, alguém tem alguma objeção a isso? –– indagou o professor mais uma vez sem obter resposta –– voltou a sua atenção novamente ao menino Cléverson e disse:
–– Você gostaria de ler o livro “Capitães da areia”, você pareceu se interessar por ele, não?
–– Sim, professor. Eu acho que pelo que o senhor disse é um livro muito bonito, se eu puder pegar na biblioteca, vou ler.
–– Na próxima aula eu lhe trarei o livro, eu tenho um e vou dá-lo de presente a você. Sei que ficará feliz com ele.
–– Obrigado, professor.
–– Você merece, Cléverson.
Alberto voltou para a frente da sala de aula e despediu-se da classe. Antes de sair da sala ouviu comentários de alunos que sussurravam: “Que professor chato. O cara começa legal, depois vira um bicho. Tudo por causa desse idiota do rato”, no entanto, outros comentários demonstravam que havia alunos que compreenderam a mensagem e gostaram da atitude dele: “Ele está certo, nós é que estamos errados”. Alberto mantinha um senso de justiça dentro da alma e jamais deixaria passar em branco um acontecimento preconceituoso como este dentro de uma sala de aula, pensassem os alunos como quisessem. Era uma brutalidade a tortura moral e psicológica pela qual passou desnecessariamente aquele pobre menino.
No intervalo da jornada vespertina, o professor Alberto encontrou na sala dos professores a professora Helena de Matemática que ainda estava na escola. Conversaram sobre vários assuntos escolares e foi então que Alberto relatou à jovem docente o que havia ocorrido na primeira aula que dera. Helena, então, contou a ele o que sabia sobre o menino Cléverson:
–– Este menino é extremamente aplicado aos estudos, dificilmente falta às aulas e sempre tem boas notas. Eu dei aulas para ele durante dois anos consecutivos, este ano ele não terá aulas comigo, mas nunca o Cléverson me causou problemas em sala de aula, mesmo sendo vítima constante das brincadeiras inescrupulosas de outros alunos ele se mantém calado, pobre menino.
–– Helena, por que os alunos o chamam de rato?
–– Ele é muito pobre, mora na favela do Heliópolis, num pequeno barraco à beira de uma das avenidas principais da região que dá acesso ao Ipiranga e à avenida dos Bandeirantes. Porém, a miséria na qual vive não lhe roubou a dignidade e a retidão, ele passa várias horas do dia trabalhando com um tio, irmão da mãe dele, que é “carroceiro” e...
–– O que é “carroceiro”, Helena? –– o curioso Alberto interrompeu o raciocínio da professora.
–– Então... “carroceiro” é o nome popular pelo qual são tratados os catadores de papel e ferro velho, alguns os chamam de “catadores de papel”, outros de “catadores de latas” ou “carrinheiros”, são figuras comuns nas ruas, eles estão sempre à frente de grandes carrinhos feitos de madeira ou lataria que formam uma enorme caixa apoiada sobre duas rodas, passam pelas ruas empurrando estes carrinhos e pegando materiais recicláveis, tipo... plásticos, garrafas, latas vazias e papelão. Você já deve ter visto alguns deles, são muito comuns atualmente nas ruas da cidade, passam o dia recolhendo grande quantidade de materiais recicláveis e depois os vendem por uma ninharia. Trata-se de um trabalho importante para a sociedade, que junto com o governo ainda não percebeu o valor desses trabalhadores e da reciclagem, ultimamente o governo está decretando uma guerra contra os “carroceiros”, o governo acha que eles sujam e atrapalham a cidade, então eu pergunto, Alberto: esse povo todo vai viver fazendo o quê? Não há empregos suficientes para todo mundo, os “carroceiros” vivem na informalidade e ainda são implacavelmente perseguidos porque trabalham! É justo isso? Vê se tem lógica um negócio desse! Para finalizar, como eu estava dizendo, o Cléverson trabalha empurrando um desses carrinhos e recolhendo materiais recicláveis junto com o tio dele, no ano passado alguns alunos o viram procurando latas, garrafas e papéis em um terreno baldio da região e o compararam a um rato, daí surgiu esse apelido maldoso.
–– Pobre menino. –– lamentou o professor –– Tão pequenino, tão jovem e além de enfrentar as dificuldades da vida e da sociedade, insuportáveis para muitos adultos, ainda é vítima do preconceito dos amigos de escola, daqui a pouco ele se cansa disso tudo e abandona a escola, já vi alguns casos assim, o preconceito para mim é um dos piores crimes que existem na sociedade, Helena.
–– Também acho, Alberto. Esse menino sofre um dos preconceitos mais enraizados na nossa sociedade, dificílimo de ser eliminado, é o preconceito contra os excluídos, contra os miseráveis. O presidente discursa dizendo que vai acabar com a pobreza, muitos dizem a mesma coisa, mas a miséria permanece cada vez mais evidente. Bem, agora tenho que ir, o intervalo já acabou, outra hora a gente conversa mais sobre isso. Até logo, Alberto, boa aula.
–– Obrigado, Helena. Até mais, boa aula pra você também.
No dia seguinte, como havia prometido, Alberto deu ao menino Cléverson o livro “Capitães da areia”, o jovem ficou extremamente feliz, a turma da classe do garoto aos poucos voltava a chamá-lo pelo nome verdadeiro. Um mês depois, Cléverson encontrou o professor Alberto no corredor da escola, antes do início da aula, e contou ao mestre que havia terminado de ler o livro e que gostou demais dele, disse também que conhecia alguns meninos que, como no romance, viviam iguais aos “Capitães da areia”, não tinham onde morar, não tinham pai, não tinham mãe, nem ninguém que cuidasse deles, e que ainda bem que ele, Cléverson, tinha a mãe, o tio e mais dois irmãos, embora o pai nunca houvesse conhecido, fora por ele abandonado ainda quando era bebê, mas o pai nunca lhe fez falta, tinha o carinho da mãe e da família.
–– Muito bem, Cléverson, você leu rápido, hein! –– elogiou o professor Alberto, orgulhoso do menino –– Agora você pode guardar o livro e quando tiver vontade, leia-o novamente.
–– Professor, peço desculpas pro senhor, mas eu doei para a biblioteca. Fiquei matutando que deixando o livro lá na biblioteca muitos outros meninos poderão ler também. Na minha casa ele não tem muita utilidade, eu já li, ninguém mais sabe ler por lá, então na biblioteca ele é mais útil, ontem mesmo um menino perto da minha casa foi pegar o livro para ler, eu que mandei o menino ir lá pegar. O senhor me desculpa, eu não gosto de dar as coisas que eu ganho de presente, mas acho que fiz o certo. Onde eu moro uma pessoa ajuda a outra, se a gente ganha um sapato e ele não serve na gente, é certo que serve para alguém na casa do vizinho, porque se o vizinho tem arroz e feijão e a gente não tem, como já aconteceu lá em casa várias vezes, ele não deixará a gente com fome.
–– Cléverson, você fez muito bem, parabéns pelo gesto, sinto-me muito feliz por saber que ainda há pessoas que pensam como você, se todos pensassem assim teríamos um mundo melhor, além do mais, haverá muitos outros livros para que você os leia durante toda a sua vida, a biblioteca é uma ótima opção, estou encantado com o seu ato de solidariedade, –– Alberto atentou-se ao relógio –– agora vamos entrar que a nossa aula já vai começar, antes eu vou rapidamente até a sala dos professores, pois esqueci o livro de ponto em cima da mesa, diga aos nossos colegas que volto logo.
O menino entrou na sala de aula, enquanto o professor Alberto caminhava pelo corredor da escola em direção à sala dos professores enxugando com um lenço uma lágrima que se desprendia dos seus olhos umedecidos. Ficou na sala sozinho por uns dez minutos pensando no jovem aluno e chorando feito uma criança, como um pequeno e pobre menino pôde, com um simples gesto de solidariedade, demonstrar o quão grande é o real desapego material e a absoluta ausência da ganância corruptora de tantos homens a um experiente mestre? O professor sentia que era por estes singelos motivos que ainda acreditava na educação, não na educação hipócrita e mecânica que se aprende em muitos manuais superficiais e em livros de “psiconeuroses sociais”, mas na educação humanitária e construtiva que tanta falta faz ao nosso mundo, aquela educação que vem do berço porque está enraizada no próprio indivíduo, nas dificuldades de quem convive com a miséria absoluta e com a falta de perspectivas melhores de vida. Aquele momento havia registrado, por intermédio de um pobre menino, mais uma bela lição de respeito ao próximo e o mestre entendeu que, como em “Capitães da areia”, encontramos de verdade meninos e meninas especiais na nossa vida, porém, infelizmente, em condições adversas impostas pela própria vida.

* * * * * * *

6 - Anunciação

Trá - trá - trá - trá - trá...  trá - trá - trá - trá - trá... A máquina de costura não pára, ela não pode parar, muito menos a mulher que está à frente dela no comando de intermináveis movimentos mecânicos e repetitivos. E mesmo que a exaustão, o cansaço e o sono tentem exaurir as forças da costureira Mirtes, ela não se entrega, ela não pode se entregar. Trá - trá - trá - trá - trá... As cansativas vinte e quatro horas do dia chegaram ao fim, e já passava da uma hora da manhã de um novo dia, na certa seria outro dia cheio de tarefas, a dedicada costureira estava na oficina desde que Betinho dormiu por volta das vinte e duas horas. Mirtes, quando saiu do local de trabalho naquela noite, dirigiu-se ao quarto em busca de uma blusa, a temperatura havia caído demais e o frio comprometia os movimentos de suas mãos e de seus braços, precisava de algo que a aquecesse. Havia feito muito frio nas noites anteriores àquela, e a previsão do tempo havia informado que o vento gelado, a garoa e o clima de inverno estender-se-iam por mais alguns dias e, realmente, aquela noite do fim do mês de junho estava fria demais. Quando entrou no quarto viu que Alberto dormia profundamente, abriu o guarda-roupa e pegou a blusa, vestiu-a sobre a camisola –– “Pronto. Assim está melhor” –– comentou bem baixinho para não acordar o marido, depois disso, voltou à oficina e aos intermináveis fardos de tecidos que tinha pela frente, desde então, ela não havia mais arredado o pé dali.
Como é duro ignorar a necessidade de repouso quando o cansaço do corpo e da mente esgota as últimas reservas de energia da fragilizada máquina humana. O sono, por vezes, tentava derrubar Mirtes que bocejava cada vez mais, porém ela sabia da importância e da necessidade que significavam aquelas noites e madrugadas que se passavam sem que ela dormisse, sem que ela se desse ao luxo do descanso restaurador noturno, se não fosse o dinheiro extra levantado à custa de seu trabalho e esforço, teria sido impossível a sobrevivência econômica familiar naquele difícil final do ano 2003, o que ela conseguiu ganhar, somado ao salário limitado do marido, havia contribuído para o pagamento de muitas contas e, com isso, manteve-se a reputação e o crédito financeiro da família na praça, é bem verdade que no fim do mês nada sobrava, mas conseguiam desta forma pagar os valores mensais mínimos exigidos pelos cartões de crédito sem extrapolar o vermelho das contas bancárias, muito embora sobrevivessem sempre com a corda no pescoço. O pior de tudo eram os juros mensais que tinham que ser pagos pelo uso do dinheiro emprestado de bancos e financiadoras –– “Ah! Os juros, como são cruéis, andam pela hora da morte” –– lembrava-se a costureira.
Mirtes sabia que a situação econômica familiar ainda era extremamente grave e se fosse necessário que ela não dormisse para ficar todas as noites em frente à máquina de costura, para melhorar a saúde financeira da família, assim ela o faria, não havia outro jeito.
Trá - trá - trá - trá - trá...  trá - trá - trá - trá - trá... Duas horas da manhã, a costureira sente que o corpo não ajuda mais, as mãos estão trêmulas e os braços doem demais, aquela era apenas mais uma madrugada entre tantas outras que já havia passado sem descansar, era uma rotina de cão, o que a cansava também era o acumulo de tarefas em casa –– “Ah! Os serviços domésticos. Como são cruéis” –– durante o dia lavava roupa, limpava a casa, fazia almoço, preparava o jantar, lavava louça, passava roupa, eram tarefas intermináveis e, ainda que Alberto a ajudasse bastante pela manhã, praticamente a responsabilidade por todas as tarefas restantes sobrava para ela, quase não conseguia costurar uma única peça de roupa durante o dia, restavam-lhe apenas as noites para dedicar-se integralmente à costura.
Duas e quinze da manhã, Mirtes não podia se entregar ao sono para não atrasar o beneficiamento de que o patrão tanto precisava. Pensou em uma maneira de driblar o sono que a cada instante vinha mais forte teimando em desacordá-la. Decidiu ligar o rádio do micro-system que mantinha na oficina para se distrair, chateou-se com os mesmos comentários que ouvira durante o dia, desligou o rádio –– “Chega de notícias ruins! Acho que prefiro ouvir uma boa música” –– pensou. Saiu da oficina e foi até a sala procurar um CD de que ela gostasse bastante, vasculhou os discos de MPB do marido, o professor adorava MPB, e ela também, deparou-se com um CD do Alceu Valença –– “Eu amo as canções do Alceu Valença” –– voltou à oficina, pôs o CD para tocar e, logo, a belíssima musicalidade e poesia da canção “Girassol” preencheu o ambiente, praticamente ritmada e invadida pelo mecânico barulho da máquina de costura:

“ Mar e Sol /Gira, gira, gira, gira, gira, gira, gira, girassol”
Trá - trá - trá - trá – trá – trá – trá – trá – trá – trá...
“Mar e Sol /Gira, gira, gira, gira, gira, gira, gira, girassol”
 Trá - trá - trá - trá – trá – trá – trá – trá – trá – trá...
“ Um girassol nos teus cabelos”  (trá – trá – trá – trá – trá...)
“ Batom vermelho, girassol”  (trá – trá – trá – trá – trá...)
“Morena flor do desejo”  (trá – trá – trá – trá – trá...)
“Há teu cheiro em meu lençol”...

Enquanto todos na casa dormiam, Mirtes costurava, viajava nas canções e pensava em cada membro da família: Betinho crescia forte e saudável –– “Graças a Deus” –– aliviava-se a mãe, embora, para acompanhar o elétrico menino durante o dia era necessário um dispêndio de energia indescritível, Mirtes já preparava o pequenino para frequentar a escola em 2005; Raphael mantinha-se bem na escola, conseguia sempre boas notas, apesar de que Mirtes dificilmente o visse estudando em casa –– “Será que vive na escola à base de cola na hora das provas?” –– indagava a preocupada costureira com a educação do filho mais velho –– “Acho que não”. ––  Via com o passar dos anos, Raphael tornar-se um rapazote lindo, alguns namoricos, as meninas da escola e do bairro não o perdiam de vista, mas o mancebo ainda era um menino, muitas vezes nem percebia o flerte das meninas que suspiravam ao vê-lo, tinha por companheiro os amigos da escola e um skate que o acompanhava nos finais de semana, coisas de adolescente; e Lívia transformou-se em uma mocinha bonita, alegre e vaidosa, demorava um tempão no banho e depois horas e horas na frente do espelho para cuidar dos cabelos e decidir a roupa que iria vestir, gostava de comprar xampus e perfumes, mas em matéria de estudos era muito aplicada e responsável –– “Acho que isso ela puxou do Alberto, Lívia gosta demais de ler” –– lembrava-se admirada pelo empenho nos estudos da filha. Lívia também adorava passear com as amigas e ouvir música, porém, se havia trabalhos ou provas escolares iminentes, a menina desistia da diversão e se dedicava integralmente aos estudos.
Trá - trá - trá - trá - trá... Mirtes pensava agora em Alberto. Trá - trá - trá - trá - trá... Havia noites em que o marido perdia o sono durante a madrugada e, enquanto ela trabalhava na oficina, ele ficava na sala lendo sob a luz do abajur ou a verificar e corrigir provas e trabalhos escolares, às vezes ia até a oficina fazer companhia para ela, conversava um tempão sobre as crianças e sobre as coisas da vida, gostava de comentar os assuntos da escola: alunos, professores, avaliações, muitas dificuldades, mas algumas alegrias também. Esta madrugada, porém, o professor não havia acordado, dormia profundamente, estava muito cansado, para Mirtes sentia falta da companhia do marido. Trá - trá - trá - trá - trá... Alberto, ultimamente, como se fosse um bálsamo para acalmá-lo dos assuntos e aborrecimentos como os problemas de ordem financeira, alegrava-se quando falava sobre um aluno que ele conhecera chamado Cléverson, praticamente em todas as madrugadas este aluno era motivo para o professor iniciar uma conversa com a esposa, o professor o considerava um aluno especial e exemplar, dizia que o jovem aluno morava na favela do Heliópolis, bairro próximo do Ipiranga. Cléverson durante o dia, quando não estava na escola, vivia nas ruas à procura de papelão, plásticos e materiais recicláveis, e apesar de todos os problemas e dificuldades do mundo pesando-lhe sobre as costas, o menino contrariava as tristes estatísticas sociais e não desistia de estudar, era muito educado e um dos melhores alunos da classe, Alberto descrevia essas coisas para ela citando o menino como um exemplo de esperança e vida. Trá - trá - trá - trá - trá... Mirtes lembrou-se de que alguns meses atrás, o professor havia comprado alguns livros: gramática, dicionário, paradidáticos etc., além de cadernos e canetas para dar ao menino –– “Paguei com o cartão de crédito, dividi em cinco parcelas. O Cléverson merece, Mirtes, ele é um menino que precisa somente de incentivo, eu tenho orgulho de ter um menino assim como aluno” –– disse-lhe Alberto na ocasião. Ela não quis contrariar o marido, era uma situação delicada, daquelas em que apenas as pessoas envolvidas diretamente nela, sabem entendê-la e, mais, se estivesse no lugar do professor, certamente faria o mesmo. Trá - trá - trá - trá -trá... –– “Alberto é um homem muito bom, bom demais, ele tem um coração enorme” –– desta maneira Mirtes definia o marido em suas lembranças, para ela e para muitos não havia melhor definição, o professor era uma pessoa simples, mas muito caridosa. Trá - trá - trá - trá - trá... Mirtes se lembrava agora com carinho das madrugadas em que o professor se levantava do sofá e ia correndo até a porta da oficina –– “Mirtes, ouça esta poesia, ela é linda” –– e recitava o poema para ela –– “Realmente é linda, Alberto, parece que foi escrita por ...” –– arriscava o autor e, às vezes, –– “Acertou, Mirtes. Você está ficando boa nisso, hein” –– assim era o professor. Havia ocasiões em que lia para ela algum trecho de livro ou algum trabalho escrito por alunos do qual se admirava, Alberto adorava o contato com as letras e ela adorava a companhia de Alberto, como a companhia do marido fazia-lhe falta naquela noite interminavelmente fria. Trá - trá - trá - trá - trá... Trá - trá - trá - trá - trá...
Duas e meia da madrugada. Trá - trá. Mirtes sentiu sede, foi à cozinha, tomou um pouco de água e aproveitou para vasculhar mais uma vez os dormitórios da casa, notou que os filhos e o marido continuavam a dormir, sentiu inveja de todos eles, àquela altura da madrugada o sono a incomodava bastante, os olhos que ela não parava de esfregar pareciam ter areia. De volta à cozinha, decidiu preparar um café na tentativa de se manter acordada, pôs um bule com água no fogão. Enquanto a água esquentava, Mirtes retornou à oficina para não perder tempo. Trá - trá - trá - trá - trá... Dez minutos de costuras depois, Mirtes, novamente na cozinha, coou o café, adoçou-o e sentou-se numa das cadeiras da mesa com o bule e uma xícara nas mãos. O pensamento da costureira divagava agora nas problemáticas questões financeiras da família, enquanto ela punha o café na xícara e queixava-se em silêncio –– “Deus do céu, por que essa situação não melhora nunca, não estamos aguentando mais tanta privação, tanto sufoco” –– e continuava –– “O coitado do Alberto anda tão preocupado que dorme irrequieto, mexe-se na cama a noite inteira, eu trabalho feito um relógio e, mesmo assim, o dinheiro é sempre contado. Quando será que esta insustentável situação vai acabar? Quando?”
Mirtes degustou o café –– “Hummm, ficou bom”. –– De repente, sentiu uma corrente de ar frio penetrar no ambiente, estranhou o calafrio repentino que arrepiou o seu corpo inteiro, mas ponderou –– “talvez a janela da dispensa esteja aberta”. –– Foi até a dispensa que ficava entre a cozinha e a oficina e notou que a janela não estava aberta, estava tão fechada quanto todas as outras janelas da casa. –– “Deve ser esta mudança de clima, vai ver que está esfriando mais ainda, o tempo anda tão maluco ultimamente” –– ressaltou. Voltou à cozinha ainda com a xícara na mão, apoio-se na pia tomando o café devagar, saboreando cada gole, preferiu não se sentar para não perder mais tempo. Quinze para as três da manhã. Da cozinha, Mirtes ouvia as músicas que tocavam na oficina, e o marcante solo de guitarra da música “Anunciação” do Alceu Valença pulsava definitivamente aguardando a perfeição dos versos da poesia que aos poucos ia se desencadeando:

“A bruma leve das paixões que vêm de dentro
Tu vens chegando pra brincar no meu quintal
 No teu cavalo, peito nu, cabelo ao vento
E o sol quarando nossas roupas no varal
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais...”

Estranhamente, Mirtes sentiu novamente aquele calafrio percorrer-lhe o corpo, da ponta dos pés até a cabeça, parecia uma geladeira aberta na frente dela, não conseguiu mais desencostar-se da pia e, enquanto segurava a xícara ainda entre as mãos, ouviu nitidamente uma voz que falando ao seu ouvido parecia misturar-se ao vento e diluir-se no ar: –– “Mirtes, minha filha, ouça o que tenho a lhe dizer. O dinheiro na sua vida não lhe trará felicidade nenhuma, ele significará apenas discórdias e despedidas. Lembre-se sempre destas palavras e que Deus a abençoe”.
A xícara soltou-se das mãos de Mirtes espatifando-se no chão, a mulher deu um grito ensurdecedor, ficando em seguida durante algum tempo sem conseguir pronunciar qualquer palavra. Alberto levantou-se rapidamente e foi à cozinha socorrer a esposa pálida e imóvel, abraçou-a bem forte, levando-a para a cama. As crianças abriram as portas de seus quartos, haviam acordado assustadas, e Lívia quando viu que o pai saia de novo do quarto em direção à cozinha para pegar água com açúcar, perguntou a ele:
–– Que aconteceu, pai?
–– Nada, minha filha, a sua mãe deve ter tido um pesadelo, mas voltem vocês todos para os seus quartos e durmam. Está tudo bem.
As crianças obedeceram. Alberto foi à cozinha recolheu os cacos da xícara, limpou o chão, pegou o copo com água e açúcar, desligou as luzes e voltou para o quarto, deu água com açúcar à esposa, que de olhos arregalados ainda não havia conseguido dormir.
–– O que aconteceu, Mirtes, você teve um pesadelo?
–– A... minha mãe, Alberto... ela veio me visitar...
–– Você está maluca, Mirtes? A sua mãe morreu faz mais de dez anos.
–– Alberto, eu nunca senti a presença dela de forma tão real em toda a minha vida. Eu estava me lamentando em pensamento da falta de dinheiro, e ela, parecendo que me ouvia, disse que a presença do dinheiro não me trará felicidade nenhuma. Foi como se ela estivesse na minha frente e eu não pudesse enxergá-la, tocá-la, mas pude ouvi-la perfeitamente.
–– Está tudo bem agora, querida. Eu acho que você está cansada demais, isso faz qualquer pessoa delirar, é preciso que você durma mais, você precisa descansar. Você precisa dormir, mais tarde a gente conversa melhor.
Enfim, a escuridão e o silêncio da madrugada. O professor dormiu quase que instantaneamente, aos homens parece faltar uma sensibilidade maior para determinados acontecimentos, são sempre as mulheres que sonham mais, que entendem mais, que pressentem mais os acontecimentos. E Mirtes não estava sonhando, ela sabia disso, tinha certeza absoluta. É indescritível o que havia ocorrido, mas ela estava acordada. Mesmo que não houvesse entendido aonde a mensagem da mãe morta pretendia chegar, Mirtes continuou acordada por mais alguns minutos com os olhos arregalados para a escuridão do quarto, esperando que o fato se repetisse, agora ela não teria mais medo, não ficaria apavorada diante do invisível, era a sua mãezinha querida, Mirtes estava certa disso, mas logo o sono veio acalentar o seu cansaço porque há coisas que acontecem apenas uma vez na vida. 

* * * * * * *

7 - O Adeus

Início da primavera. Passaram-se alguns meses depois daquele estranho acontecimento com Mirtes sem que nenhum fato novo, marcante ou diferente interviesse no cotidiano do professor. Porém, como as tragédias e os acontecimentos da vida não costumam dar recados antes de virem à tona, agora, bem no finalzinho do mês de setembro, quando a alegria da estação das flores vem colorir e embelezar a sombria paisagem urbana de São Paulo, Alberto tomaria conhecimento de uma tragédia que o entristeceria profundamente.
Estava Alberto na sala dos professores, meia hora antes do início das aulas, preparando os últimos detalhes para a aplicação das provas finais do terceiro bimestre. Vinte minutos depois, terminados os preparativos, o professor se encaminhou à primeira sala de aula, adiantando-se aos alunos, pois tinha por finalidade organizar e alinhar as mesas para a aplicação do exame, entrou na sala e sentou-se na sua cadeira, pôs seus pertences, pacotes de provas e pastas escolares sobre a mesa. Abriu o pacote com as provas que seriam aplicadas aos alunos daquela classe, organizou algumas mesas que não estavam alinhadas às demais e foi colocando as provas viradas para baixo sobre cada uma delas. Logo depois, notou que os alunos vinham caminhando pelo corredor em direção à sala de aula, o ruído das vozes e os comentários sobre a prova eram cada vez mais evidentes. Os alunos começaram, aos poucos, a entrar na sala de aula, ocupando cada qual o seu respectivo lugar, o mestre ainda esperou mais dez minutos para que ninguém, que porventura estivesse atrasado, perdesse a prova, era um tempo de tolerância dado generosamente pelo professor aos alunos mais tranquilos e vagarosos. Decorridos os dez minutos de tolerância, Alberto observou a classe e notou que três lugares estavam vagos, dentre eles o lugar que era ocupado por Cléverson, a última mesa da última fileira da sala de aula –– “Certamente estes alunos não chegarão mais a tempo para o exame” –– concluiu o mestre que já estava preparado para iniciar a avaliação –– “A única coisa que estranho é que o Cléverson não costuma faltar ou chegar atrasado em dias letivos normais, e em dias de provas ele é sempre um dos primeiros a entrar na sala de aula, o que será que aconteceu para que ele não viesse hoje?” –– perplexo com a ausência de Cléverson logo no dia da prova, o professor assim questionava-se mentalmente. Enfim, com todos os alunos que estavam presentes devidamente acomodados, o professor deu início à prova:
–– Boa tarde, pessoal. Agora que todos estão prontos, podem virar as provas que estão sobre as mesas e...
Subitamente a fala do professor foi interrompida por uma aluna que não estava na sala de aula, mas que chegava atrasada e afoita, parando em frente à porta como se não fosse entrar, atrapalhando sobremaneira a concentração do mestre:
–– Professor, professor...
–– Entre, Analú. Você está atrasada, mas há tempo de fazer a prova, vamos iniciá-la agora, entre e sente-se, por favor. –– O professor tentou confortar a aluna que parecia preocupadíssima, sem perceber à primeira vista que ela tinha algo a dizer.
–– Professor, eu não vim aqui para fazer a prova, eu não tenho condições emocionais, eu cheguei um pouco atrasada, mas dava tempo de entrar na sala, até que eu soube que uma tragédia aconteceu.
–– O que aconteceu, Analú?
–– Eu não iria contar nada para não estragar a prova, mas acho que algo assim deve ser avisado imediatamente, além do mais, o diretor Martins autorizou que eu contasse tudo agora para o senhor –– irrompeu em lágrimas a menina já com dificuldades para articular as palavras.
–– Analú, o que aconteceu para que você esteja transtornada deste jeito? Fala, menina! Fala, pelo amor de Deus!
–– Professor, acabou de chegar a notícia de que o Cléverson morreu. Mataram ele, professor! Mataram ele!
Alberto ficou pasmo com o impacto da notícia que era narrada pela fala chorosa de Analú, a classe ficou em silêncio por um tempo, silêncio este logo interrompido pela falação geral dos alunos que comentavam e lamentavam o ocorrido. O professor visivelmente chocado dirigiu-se à aluna, que ainda permanecia estática na porta de entrada da sala de aula, na tentativa de obter mais informações:
–– Quando aconteceu isso, Analú?
–– Eu não sei direito, professor. Alguns moradores da favela onde ele morava estão no portão de entrada da escola conversando com o diretor Martins e contando a ele tudo o que aconteceu.
Imediatamente, Alberto apressou-se até o portão de entrada da escola onde um grupo de pessoas, dentre elas o diretor Martins, conversava sem parar.
–– O que aconteceu, Martins?
–– Alberto, estas pessoas e, principalmente, estas duas mulheres que são parentes do aluno Cléverson –– falava o diretor indicando duas mulheres de fisionomia sofrida e triste –– vieram nos trazer a triste notícia do assassinato do jovem aluno ocorrido nesta manhã, as outras pessoas que aqui estão são amigos e vizinhos da família do Cléverson, família esta que mesmo em um momento tão delicado achou por bem que fôssemos avisados do ocorrido, por esta razão, mesmo sabendo que você estava aplicando prova aos companheiros do menino assassinado, pedi a uma aluna sua que fosse avisá-lo imediatamente.
–– Fez bem, Martins. Mas, por que aconteceu isso com o Cléverson? Ele era um menino bom, estudioso, inteligente, batalhador...
–– Calma, Alberto. Nós sabemos das qualidades que tinha aquele menino, lamentamos muito o ocorrido. Vamos voltar à escola e às nossas atividades, depois quero que você vá até a minha sala para conversarmos mais.
O professor Alberto e o diretor Martins despediram-se dos parentes, vizinhos e amigos de Cléverson, cumprimentando solidariamente cada um deles. Alberto voltou à sala de aula, suspendeu a prova, arrumou os seus pertences e chorando dirigiu-se à sala do diretor Martins, alguns alunos o acompanharam silenciosamente em sua caminhada –– não havia o que falar, nenhuma palavra serviria para nada num momento de tamanha tristeza –– preferiram apenas permanecer do lado de fora da sala do diretor em respeito ao sentimento de dor e solidão do professor, que entrou e sentou-se levando as mãos de pronto à cabeça e, desta maneira, ficou aguardando pela volta do diretor Martins. E logo, apontou apressado no corredor da escola o diretor, pediu licença aos alunos que permaneciam na porta de sua sala, entrou e fechou-a:
–– Alberto, meu velho, eu nem sei o que dizer. Todos nós nesta escola gostávamos muito do pobre menino.
–– Martins, o Cléverson seria um vencedor na vida se o caos e o mundo em que ele vivia o deixassem em paz.
–– É... Como esses bandidos são desumanos e covardes. Eles tiram vidas como se o fizessem por diversão.
–– Como e por que isso aconteceu, Martins? Fala logo, vai. Eu sei que você sabe de tudo.
–– Alberto, eu sei que nós todos gostávamos do garoto, mas ninguém o estimava mais do que você, eu não queria transtorná-lo ou revoltá-lo mais ainda.
–– Mas eu preciso saber, Martins. Por favor.
–– Tudo bem, Alberto, você tem o direito de saber. Foi mais ou menos assim, os assassinos foram à casa do Cléverson nesta manhã com a finalidade de roubar cerca de vinte reais que ele e o tio haviam conseguido ganhar vendendo latas e papéis velhos ontem. Não se sabe de que forma souberam da existência deste mísero dinheiro. Bem, o tio, que era quem estava com o dinheiro, havia saído e a mãe do Cléverson também não estava em casa, no entanto, os assassinos não acreditaram quando o menino contou a eles que não estava com dinheiro nenhum, acharam que Cléverson tentava os enganar. Um dos bandidos queria que o pobre menino desse conta dos vinte reais de qualquer forma, como isso não foi possível, ele matou o Cléverson com dois tiros à queima-roupa. O irmãozinho mais novo do Cléverson, uma criancinha de dez anos que estava na casa na hora do ocorrido, viu como tudo aconteceu, mas foi poupado pelos assassinos, a pobre criança contou à polícia o que havia presenciado, porém disse que nunca havia visto naquela região da favela aqueles homens que assassinaram o irmão dele, tudo indica serem os assassinos de outra região ou que o menininho foi ameaçado por eles e está com medo de delatá-los.
–– Malditos, desgraçados! É uma barbaridade o que fizeram, Martins.
–– Sinto muito, Alberto. Parece-me que a sociedade entrou numa fase perigosa. Mata-se por tão pouco, mata-se sem escrúpulos, mata-se um ser humano ainda criança como se não fosse nada.
–– Martins, eu vou à casa do Cléverson.
–– Vá, Alberto, e leve à família do menino Cléverson os sentimentos de nós todos aqui da escola, eles estão precisando de amparo neste momento difícil.
Na secretaria da escola, o professor Alberto tomou nota do endereço de Cléverson para onde se dirigiu.
A favela do Heliópolis não ficava longe dali, uns vinte minutos a passos largos seriam suficientes para que o professor chegasse onde a família do aluno assassinado morava. Já dentro da favela, o professor procurava pela rua e número da casa sem que obtivesse êxito diante da numeração irregular e da dificuldade de acesso local. De repente, um morador da região, um homem que estava numa das esquinas, cheio de indagações, álcool e fumo na cabeça, interrompeu Alberto:
–– Qué que tá pegando, bacana?
–– Boa tarde, senhor. Eu procuro por esta rua e por este número, talvez o senhor conheça. –– Perguntou o professor, mostrando ao homem o endereço anotado num pedaço de papel.
–– Cê tá procurando, por quê? Qualé o babado?
–– Morreu hoje um menino que morava neste endereço.
–– Cê é da onde, mala?
–– Eu era professor do menino que foi assassinado e quero prestar minha solidariedade à família dele.
–– Ah! Firmeza, bródi! Pensei que cê era outra coisa. Cê tá vendo ali embaixo, aquela casa com gente na porta, lá embaixo, é lá. O moleque morreu hoje né, só?
–– É. Uma tragédia como esta não deveria acontecer de forma alguma. Em que mundo nós estamos vivendo.
–– Esta é a realidade por aqui, dotô. Essa mulecada não tem escolha, se corrê o bicho pega, se ficá o bicho come. Não tem escolha, não tem idade, aqui cada um é cada um. Acho que quem matou o muleque num é nem daqui, deve ser treta de fora.
–– Desculpe-me, eu não me apresentei e nem perguntei o seu nome. Eu me chamo Alberto. E você?
–– Dum-Dum.
–– Prazer, Dum-Dum. Até mais.
–– Vai na paz, sangue bom. Inté.
Chegando à casa de Cléverson, casa pequena e simples de alvenaria, desprovida de qualquer detalhe de acabamento, bem no meio da favela do Heliópolis, o professor foi recebido por uma tia do menino assassinado e, em seguida, foi apresentado à mãe do garoto. A pobre mulher estava inconsolável, sentada numa cadeira, chorava um choro silencioso, um choro que misturava dor e angústia e, com um lenço branco nas mãos, enxugava cada lágrima que lhe descia dos olhos. Porém foi um bálsamo para ela saber da presença do professor ali naquele momento tão sofrido da vida:
–– Professô, como dói, professô. O meu minino era muito bão, estudioso, trabaiadô, sabia lê e escrevê dereitim, num mericia isso, professô. Ele gostava dimais da conta do sinhô.
–– Eu sei, minha mãe, eu sei. Esse menino era muito especial para todos nós. –– Alberto falava enquanto acariciava o rosto da triste mulher, mais uma Maria sofrida, iletrada, injustiçada pela vida, mas com a dignidade de uma mãe de verdade. As lágrimas derramadas por ela comoviam o mestre.
–– O meu minino dizia quais qui todo dia: “Mamãe dispois que eu estudá o úrtimu ano na iscola, vô sê um professô igual o professô Alberto”, ele falava bem assim, professô.
Alberto não se conteve, beijou as mãos da pobre mulher, agora também compartilhando aquele choro silencioso e doído, acariciou novamente o rosto dela e despediu-se prometendo que voltaria mais tarde para o velório e o enterro do garoto covardemente assassinado.
Chegando em casa, o professor avisou a esposa do ocorrido e trancou-se no quarto –– queria ficar sozinho –– muito triste com o que havia acontecido. Não conseguia se conformar com o assassinato de Cléverson e o pior de tudo era o sentimento de impotência diante do fato. Lembrava-se do choro angustiante da pobre mãe do aluno morto. Passou a tarde inteira absorto nas lembranças boas da convivência curta, porém definitiva, que tivera com o jovem na escola. À noite não quis jantar, tomou banho e por volta das vinte e duas horas, despediu-se da esposa –– Mirtes ficou em casa para cuidar das tarefas profissionais e dos filhos –– e rumou em direção ao Jardim Heliópolis onde passaria a noite no velório e acompanharia o enterro de Cléverson que se daria às nove horas da manhã do dia seguinte. A esposa recomendou-lhe muita cautela naquela região violenta, quando, depois de insistir para que o marido não fosse àquela hora da noite ao velório do menino, mas apenas ao enterro, percebeu que o homem estava firme e irredutível na idéia de ir ao velório também.
O professor tomou um ônibus numa avenida próxima de sua casa, decidiu que não faria a costumeira longa caminhada de que tanto gostava devido aos perigos das ruas nas noites paulistanas. Depois de quinze minutos, Alberto chegou ao ponto no qual deveria descer na Estrada das Lágrimas, nome real e sugestivo para a triste ocasião. Logo que o professor desceu viu a Paróquia de Santa Edwiges, uma igreja linda, com a imagem da santa erguida e sustentada por uma enorme coluna de concreto na porta da entrada principal onde há uma escadaria. Santa Edwiges, a protetora dos pobres e endividados, parecia olhar para a região dali do alto da igreja cravada sutilmente no coração da miséria e da pobreza da periferia paulistana. Dentro da igreja o velório já acontecia, não era costumeiro haver velórios naquele espaço, mas o pároco local, devido à comoção geral que o episódio trágico provocou na comunidade da região, entendeu ser coerente e providencial a concessão excepcional do espaço para a realização do velório de Cléverson, atendendo a um pedido comovente da família.
Alberto subiu a escadaria e entrou na igreja, da porta da entrada principal, quando olhou para dentro, contemplou a enorme construção singela e ao mesmo tempo bonita do lugar. Havia no altar, onde o corpo de Cléverson estava sendo velado, uma pintura de Jesus Cristo com as mãos espalmadas despejando farta luz sobre todos os presentes. As paredes laterais da parte interna da igreja não eram pintadas, nelas havia, propositalmente, tijolos à mostra de diversas tonalidades de cores que refletiam uma claridade suave, agradável e diferente ao recinto. O professor dirigiu-se vagarosamente pelo corredor formado entre os bancos, em que os fiéis sentam-se em dias de missa, na direção do caixão com o corpo de Cléverson, havia muita gente em volta do esquife: parentes, amigos, vizinhos e curiosos de toda ordem. Alberto cumprimentou novamente a mãe de Cléverson. A mulher chorava sem parar debruçada sobre o pequeno e franzino corpo que repousava com a face de aparência pálida, mas tranquila, para todo o sempre.
–– Olha pro meu minino, professô. Ele era tão bunitu. Ele tá cum Deus e Nossa Sinhora agora.
–– O seu menino descansa em paz, minha mãe. Ele parece tranquilo e distante, sei que está melhor que a gente aqui. Sentiremos muito a falta dele.
Passou-se a noite naquele clima de tristeza absoluta e revolta pela injustiça cometida. Uma comunidade esquecida, silenciosa e solitária –– a televisão não noticiou nada, os jornais não publicaram uma linha e o rádio calou-se sobre o fato –– velou mais um de seus moradores, um jovem que tinha toda a vida pela frente, assassinado cruelmente em meio à indiferença da grande Pátria brasileira, mãe gentil que, por vezes, dá as costas aos seus filhos socialmente excluídos.
Ao professor, na manhã seguinte, cansado e entorpecido pelo sono, depois que viu a última pá de terra ser lançada sobre o túmulo de Cléverson, nada mais restava fazer ali que não fosse caminhar de volta para casa.

* * * * * * *

8 - Ressaca eleitoral

Triiimmm... Triiimmm... Triiimmm...
–– Dona Sônia, eu não estou para mais ninguém hoje! Entendeu?
–– Sim, dr. Tavares.
O doutor Tavares, ou melhor, Antônio Lúcio Tavares, presidente nacional do PSE, doutor não se sabe em que, levantou-se de sua confortável cadeira e fechou a porta de sua sala, não queria ser incomodado pelo insistente barulho dos telefones que vinham da recepção, enquanto conversava:
–– Se esse dinheiro não chegar logo, não sei o que faremos. Não aguento mais ouvir esses telefones que tocam sem parar, acabei de desligar todos os meus celulares. As eleições acabaram e os nossos candidatos precisam cobrir as dívidas que foram feitas. Esse dinheiro é mais esperado que nunca, Mário. Se ele demorar mais um pouco para vir, os candidatos vão me matar, não sei mais o que digo para acalmá-los, tenho vontade de passar umas férias na lua.
–– Tavares, Tavares... Calma Tavares. Desse jeito você enfarta, meu nego. Eu estive com o doleiro hoje cedo e ele me garantiu que metade da grana estará em nossas mãos até o fim desta semana. Hoje é terça-feira, lá pra sexta cinquenta por cento da grana já estará disponível.
–– Metade? E o resto, Mário?
–– Não se tem garantia nenhuma do restante do dinheiro. Você sabe como são essas coisas, né? O dinheiro dá uma volta enorme para chegar limpo aos cofres do PSE, durante este trajeto perde-se uma boa parte dele pelo caminho.
–– Tudo bem, mas perder metade é demais. Que roubo! Não se pode confiar mais em ninguém, ainda mais nesse doleiro ladrão que você arrumou para o partido. São muitos os candidatos do PSE que precisam saldar as dívidas que fizeram durante as campanhas, não há como esperar mais, já estamos na metade de dezembro, Mário. Está demorando demais! Os cobradores batem nas portas dos candidatos do PSE todos os dias. Foram milhares de santinhos, camisetas, chaveiros, churrascos, canetas, shows, artistas e etc... etc... etc...
–– Tavares, o PSE tem uma pífia representatividade aqui em Brasília, são apenas dois senadores e vinte e seis deputados, com esse número não dá pra brigar por nada. Precisamos fortalecer o PSE no cenário federal, eu soube por intermédio de um colega, um deputado federal de meia-tigela pertencente a um partido que faz oposição ao governo, que há um esquema na alta cúpula federal enchendo os cofres de alguns partidos da oposição para que o governo consiga maioria no Congresso Nacional, enquanto isso da gente ninguém se lembra. Entende, belo? O PSE ainda não tem poder de fogo no lugar certo, nosso partido não faz nem cócegas no governo federal, é muito pouco ainda, por isso estamos sempre puxando o saco do presidente da República e continuamos com as nossas dificuldades. Está errado, Tavares. Nós temos que partir pra cima do governo também.
Mário acendeu um charuto cubano e, depois de uma bela baforada, continuou:
–– Esfria a cabeça, Tavares. Paciência. Você se preocupa a toa, maninho. Em política tudo é relativo, nada é definitivo. Abra o jogo com o partido. O PSE deve bancar primeiro os candidatos eleitos, principalmente os prefeitos que fizemos nas capitais do País, são eles que trarão dinheiro para os nossos cofres, depois disso, o que sobrar, se sobrar alguma coisa, vai para os candidatos derrotados. Quem sabe não pinta pelo caminho mais algumas doações para a próxima campanha e tudo se resolve. Veja bem, eu saí de São Paulo e vim até aqui, em Brasília, para ajudar você a resolver este problema dentro do PSE e acho que a única solução que nós temos é esta, não temos outra.
–– Mário, você é politicamente genial. É bom ouvi-lo antes de tomar qualquer decisão. Você tem toda razão. Vou abrir o jogo e dizer que primeiro receberá quem ganhou, depois os outros. Assim é mais justo.
–– Ainda bem que você não é mais aquele cabeça dura que eu conheci. Este partido precisa crescer. Nós não temos nomes fortes e competitivos para as eleições estaduais e federais de 2006, o PSE precisa trabalhar rápido senão a coisa desanda, não podemos ficar sempre com o chapéu na mão vivendo de esmolas, vamos pra cima. Eu acho que esta é a hora para o PSE criar um canal de diálogo com o País. Primeiro precisamos encontrar um marqueteiro bom e, depois, vamos até onde Judas perdeu as botas atrás de apoio, dinheiro e votos para a próxima eleição. A hora é essa, Tavares, quanto mais cedo melhor.
–– Eu assino embaixo tudo o que você disse.
Mário acompanhava os movimentos de Tavares e ao mesmo tempo lembrava-se de que metade do dinheiro, que motivava a preocupação do velho presidente do PSE, já havia sido surrupiada por ele: “Tavares, Tavares, Tavares... O mesmo idiota de sempre. Você nem desconfia que metade dessa grana já está no meu bolso, ou melhor, nas minhas contas clandestinas... Metade dessa grana é minha, trouxão”. Tavares jamais imaginaria que Mário, o melhor articulador político do PSE, já havia embolsado a metade do dinheiro que serviria para saldas as dívidas de campanha do partido. 
–– Mário, por que você não sai para deputado federal nas próximas eleições? Inteligente do jeito que você é, acho que logo seu nome seria tão conhecido e lembrado que você poderia, depois disso, tentar um governo estadual ou até uma presidência da República.
–– Não. Não. Eu gosto de trabalhar no anonimato, gosto mesmo é dos bastidores que é onde as coisas mais importantes acontecem e você bem sabe Tavares, meu amigão, que eu sou um sujeito muito tímido para aparecer em público. Sou tímido, tímido demais. O PSE precisa mesmo é de políticos de verdade que tenham tino e vocação, esses professores que nos representam são ‘povão’ demais. Não precisa apenas ser político, é preciso parecer político, o povão adora isso. Por isso é preciso saber fazer política. O verdadeiro político tem que ser um ótimo ator, tem que sorrir e chorar na hora certa, pois incorporará um personagem para a vida inteira, o nosso povo acredita mais no que vê do que nas coisas que de fato acontecem. O brasileiro é naturalmente apaixonado por falsos heróis. O nosso partido ainda não encontrou o homem certo para representá-lo, é difícil encontrar políticos de verdade quando se é um partido pequeno, essa gente de nome e de peso vai toda para os partidos mais conhecidos. Na reunião que faremos à tarde com todos os deputados e senadores que representam o PSE aqui em Brasília vou falar sobre isso, quem chegou até Brasília deve continuar onde está. 
Enquanto o esperto Mário aplicava seus golpes e artimanhas no próprio partido em Brasília, Ana estava em São Paulo fazendo compras de final de ano.
O Natal se aproximava trazendo paz, saudade, esperança e, para aqueles que podem, muito consumo. Mário deixou uma quantia grande de dinheiro com a esposa para que ela comprasse o que precisasse –– “Pode gastar o quanto quiser. Este ano o meu trabalho rendeu bastante. Dinheiro não é problema”. –– Ana inocentemente nem desconfia que a procedência deste dinheiro nada tinha em comum com o espírito natalino. A mulher sai feliz da vida das lojas carregada de pacotes e sacolas compradas com dinheiro sujo roubado dos cofres nefastos do PSE. Ana costuma presentear todos os parentes e amigos mais próximos nesta época do ano. Para ela, esta era uma maneira bonita de dizer “não me esqueci de você durante o ano inteiro”. Da irmã Mirtes e filhos são os primeiros presentes comprados por Ana, depois para o marido, o cunhado e por aí vai. As voltas que a consumidora dá das lojas do shopping ao estacionamento, onde está o carro, são incontáveis. A mulher vai enchendo o maleiro de presentes, quando não encontra o que procura em um shopping parte para outro sem titubear.
Estava Ana voltando das compras à tarde quando avistou o cunhado Alberto atravessando uma avenida em frente ao parque ecológico do Ibirapuera. Ana imediatamente buzinou para o cunhado, que distraído como sempre, não a viu. Buzinou mais duas ou três vezes, mas o professor continuou a caminhar sem perceber nada. Qualquer som de buzina se perde misturado ao barulho do trânsito nas avenidas paulistanas. Ana abriu o vidro da janela do carro, pôs metade da cabeça para fora e chamou-o pelo nome:
–– Alberto, Alberto!
Só então o professor a viu. Ana encostou o carro na calçada e Alberto surpreso voltou da travessia, vindo na direção da cunhada:
–– Ana! Que surpresa vê-la por aqui.
–– Eu vim ao shopping fazer umas comprinhas de final de ano. E você Alberto o que faz por estas bandas?
–– Ah... Eu vim caminhar no parque, refrescar a cabeça, gosto daqui, a minha atividade profissional deste ano já está no fim e hoje me deram folga. Como está a minha cunhada querida?
–– Estou bem.
–– E o Mário, como vai?
–– O Mário está em Brasília, foi a uma convenção do PSE. Passaram-se as eleições deste ano e ele não sossegou ainda. Esse negócio de política não dá lucro nenhum para ele, se ele não advogasse durante o ano inteiro eu não sei o que seria de nós, mas ele gosta disso, né? Ele leva a sério, o que se pode fazer? Da Mirtes e das crianças eu nem preciso perguntar porque passei na casa de vocês pela manhã e vi que todos estão bem, lamento apenas que a Mirtes tenha tido os seus serviços dispensados pela fábrica de costuras.
–– Parece que a fábrica comprou duas enormes máquinas que fazem o serviço de umas cinquenta costureiras. A Mirtes anda muito chateada com isso, mas ela também estava se desgastando muito, eu disse para ela ter calma que a gente dá um jeito nas coisas.
–– A minha irmã se arranja logo, ela não é de ficar parada. A Mirtes é muito ativa e encara qualquer situação com muita garra. Estou pensando em abrir uma loja de conveniências no próximo ano, também não gosto de ficar muito tempo sem fazer nada, e se tudo der certo ela trabalhará junto comigo.
–– Ana, você está com pressa?
–– Não Alberto, por quê?
–– Eu gostaria de conversar um pouco com você. Vamos passear pelo parque?
–– Por mim, tudo bem.
Ana e Alberto começaram a andar pelos caminhos arborizados do parque do Ibirapuera, o professor Alberto precisava de tempo para expressar o que queria dizer à cunhada:
–– Ana, sinto muito pelo o que ocorreu lá em casa naquele dia em que você e o Mário foram nos visitar. Faltou-me tato e paciência para explicar o que penso ao Mário. Eu não queria magoar você nem a Mirtes.
–– Quem sente muito sou eu, Alberto. Acho que quem deve se desculpar é o Mário, mas ele só quis ajudar, é que, às vezes, ele é meio destrambelhado para dizer as coisas. O Mário quer ajudar você e acha que pode fazer isso por intermédio da política, coitado. Ele parece não ter noção da realidade política do nosso País. Talvez por isso que ele queira levar gente boa como você para este campo obscuro na tentativa de melhorar as coisas por lá.
–– Quando eu conversar com o Mário sobre política terei mais cuidado em aceitar a opinião dele. Acho que fui de certa forma intolerante demais.
–– Ele não vai ficar sempre falando em política com você. Acho que agora ele vai deixá-lo em paz. O Mário deve respeitar também a sua opinião, acho que você está certo em não se envolver com política, isso não leva a nada, o Mário mesmo não ganha um centavo com isso, qualquer hora ele cai na real e se afasta da política. Você vai ver.
–– Eu devia estas desculpas a você que sempre foi uma cunhada tão legal e foi bom tê-la encontrado por estas bandas, acho que agora estou com a consciência mais tranquila.
Ana gostava das palavras que vinham do cunhado, ela sempre achou Alberto o homem mais agradável que já havia conhecido, muito embora jamais tivesse exposto nada a respeito. Ana sentia uma profunda admiração pelo professor, algo que, quando solteira, muito jovem ainda, a incomodou demais. Enquanto caminhava ao lado do cunhado e ouvia cada palavra dita por ele, olhava para as árvores e para o lago do parque, hipnotizada pelo bem estar que trazia aquele espaço natural em meio à loucura paulistana. O corpo, a mente e, principalmente, as narinas agradeciam à natureza. A companhia do cunhado lhe era muito agradável. De repente, as lembranças da época em que ela era ainda a meninota que desejava profundamente o namorado da irmã vieram-lhe à tona. Quantos segredos podem ficar gravados na alma, principalmente os sentimentos de menina quando está prestes a se tornar mulher. Tudo nesta fase da vida feminina anda –– uma palavra carinhosa, um abraço apertado, um amor impossível –– à flor da pele. Desde a primeira vez em que Ana viu o professor, quando Mirtes o apresentou à família, ela ficara encantada com o jeito, o charme e a beleza do novo namorado da irmã. Havia algo de especial que Ana via naquele rapaz, porém a jovenzinha, tinha dezesseis anos na época e Mirtes dezenove, sempre soube disfarçar o encanto que sentia pelo namorado da irmã, não queria de maneira nenhuma atrapalhar a felicidade de Mirtes, além disso, Alberto jamais teria olhos para ela, o professor nunca notou o brilho que havia em seu olhar e a realidade que se escondia em seu coração. Na época do namoro de Alberto e Mirtes, Ana quase sempre dava um jeito de se manter por perto dos dois quando o professor chegava. Havia ocasiões em que faltava à menina até o ar, simplesmente por causa da presença do professor, o tradicional cumprimento –– Como vai Aninha, tudo bem? –– bastava para provocar em seu corpo reações que apenas as grandes paixões podem despertar. Sentia-se envergonhada, mas sabia que não tinha culpa por se sentir assim. As meninas nasceram para sonhar, que culpa poderia Ana ter tido naquela época por sentir uma atração pelo cunhado, ela sabia que tudo não passaria daquilo e que nem Mirtes, Alberto, enfim, ninguém saberia de nada. O tempo se encarregou de mudar ou controlar os seus sentimentos. Depois que Alberto e Mirtes se casaram, Ana passou algum tempo triste e deprimida, é claro que em família dissimulou o seu estado emocional para que ninguém desconfiasse de nada, mas quando estava no trabalho toda a depressão que sentia era facilmente notada, por isso Mário quando a conheceu notou a tristeza que havia em seu rosto. O tempo se encarregou de pôr as coisas em seus devidos lugares, tudo passou, ela também se casou e restou-lhe apenas uma admiração madura pelo cunhado.
–– É melhor eu ir embora, já está entardecendo e a Mirtes e as crianças sempre me esperam para o jantar –– disse Alberto à cunhada que divagava o olhar pelo parque do Ibirapuera.
–– O que você disse, Alberto? Desculpe eu não estava prestando atenção. A tanto tempo ando por São Paulo e jamais havia caminhado neste parque, ele é lindo. Que lugar maravilhoso!
–– Eu venho sempre aqui, Ana. Trouxe a Mirtes e as crianças várias vezes, agora é mais difícil porque estou sem carro, realizam-se vários eventos culturais nos fins de semana neste local. É muito bom. Bem, é melhor eu ir embora, a Mirtes me espera para o jantar.
–– Eu vou levá-lo.
–– Não é preciso, Ana. Eu tomo um ônibus.
–– Faço questão de acompanhá-los no jantar de hoje, vê só, estou me convidando. Posso?
–– Mas é claro. Todo mundo vai adorar.
Ana jantou com a família da irmã, mas logo voltou para casa, esperaria por Mário que tinha chegada prevista para pouco depois da meia noite e, certamente, chegaria exausto da viagem. No caminho de volta para casa, ela pensava nos mistérios da vida, mesmo tendo tantas dificuldades financeiras a família da irmã lhe parecia feliz, e ela, naquele momento, com tanto dinheiro, sentia-se triste. Um estranho sentimento de solidão atacou Ana subitamente, refletiu que enquanto o marido não chegasse estaria sozinha em casa sem ninguém para lhe fazer companhia. Abriria a porta do apartamento e encontraria a sala vazia, do jeitinho que ela deixou. Tudo no lugar, tudo em ordem. Pensou: –– “Como me faz falta um filho”. –– É, a vida tem dessas coisas. Teve, no entanto, uma idéia: –– “Já que não consigo engravidar, quero adotar uma criança, vou conversar com o Mário, acho que ele vai adorar”. –– Infelizmente, naquela oportunidade, Ana não contou com a compreensão no marido: –– “Você está maluca, Ana? Você acha que eu vou criar filho dos outros? Chego cansado, com a mente esgotada, e você me vem com essa conversa. Você não tem dó de mim não, Ana?” –– desconversou Mário. –– “Tudo bem, Mário. Não precisa ficar assim, eu só tive uma idéia. Pronto. Acabou. Estou em tratamento médico para gerar um filho. Talvez ainda tenhamos o nosso filho, ainda estou nova”. –– Duas semanas depois, Ana foi ao Pet Shop buscar “Fiel”, um gatinho para lhe fazer companhia nas horas de solidão.


* * * * * * *

9 - Presente de Natal

Faltam dois dias para o Natal. O centro de São Paulo está tomado por milhares e milhares de pessoas fazendo compras. O número de transeuntes e veículos aumentou mais que o dobro em relação à quantidade que as vielas, travessas, ladeiras e avenidas do centro da cidade costumam comportar em dias normais. Mas o que são dias normais para uma cidade do tamanho de São Paulo? No meio desta aglomeração urbana, típica das épocas de fim de ano na capital paulista, há um grupo de pessoas curiosas ocupando uma parte da calçada da praça João Mendes e uma das pistas da avenida Liberdade. Este grupo contempla o corpo de um homem que acaba de ser estupidamente atropelado. O impacto do acidente, causado por um carro em alta velocidade, arremessou o homem impiedosamente a vários metros de distância. O motorista inconsequente ignorou o sinal vermelho apanhando de surpresa a pobre vítima que atravessava a avenida na faixa de pedestres. O que mais revoltou as pessoas que viram o acidente foi o fato de o veículo não ter parado em socorro à vítima, pelo contrário, quem presenciou o sinistro afirmava que o motorista acelerou mais ainda para fugir das responsabilidades de maneira covarde. Além do mais, devido à altíssima velocidade em que o veículo estava, à surpresa do acontecimento e ao anoitecer que se aproximava, ninguém conseguiu anotar o número da placa do carro para entregá-lo às autoridades. Infelizmente, mais um assassino em potencial continuará praticando atrocidades pelas ruas e avenidas da capital paulista sem nenhum tipo de punição.
A vítima permanecia desacordada com o corpo quase inteiro no chão de uma das pistas da avenida Liberdade, –– nas outras pistas os carros continuavam em suas rotas, alguns motoristas diminuiam a velocidade para evitar novos acidentes ou simplesmente para bisbilhotar o ocorrido –– apenas as pernas do atropelado estavam imóveis sobre a calçada da praça João Mendes.
–– Chamem o resgate, urgente! Pelo amor de Deus! Este homem está muito machucado! –– desesperou-se um cidadão que tentava prestar socorro à vítima.
–– Gente, eu vi o que aconteceu! O coitado tava atravessando a avenida certinho, certinho da silva! Foi o carro que apontou na venida desembestado e avançou o sinal vermelho! Aquele caretinha passa quase que todo dia por aqui nessa mesma hora correndo feito um desinfeliz! Ainda anoto a chapa dele! Ah, se anoto! Anoto sim! Sim senhor! –– descrevia o acidente um camelô que trabalhava nas imediações, assombrado e revoltado com o ocorrido.
–– Vamos colocá-lo sobre a calçada! –– sugeriu outro cidadão.
–– Não! Não façam isso! É melhor a gente esperar o resgate. Ele pode ter quebrado alguns ossos ou até a coluna e, nesse caso, qualquer movimento poderá complicá-lo pelo resto da vida, vi isto na televisão ontem –– instruiu uma senhora cheia de sacolas nas mãos, orgulhosa pela aquisição de seu conhecimento televisivo sobre primeiros socorros.
–– Sem essa, tia. A gente num sabe nem se o cara tá vivo. –– protestou um motoboy com os olhos arregalados de curiosidade, enquanto um homem tomava o pulso do atropelado.
–– Ele ainda está vivo, mas pode morrer a qualquer momento! Cadê o resgate que não vem logo?
–– Já deve estar chegando. Faz uns cinco minutos que foram avisados. Mas eu ainda acho melhor colocar esse homem sobre a calçada, gente!
Os curiosos tentavam ajudar de alguma forma, porém o melhor que poderiam fazer naquele momento já haviam feito: chamar o resgate. O veículo do corpo de bombeiros acabava de apontar na contra-mão da avenida. Quando a viatura atingiu o local do acidente, os experientes profissionais imediatamente imobilizaram o acidentado que continuava desacordado, tomaram as providências pertinentes nos casos de atropelamento e, só então, com as sirenes ligadas, o veículo partiu em alta velocidade à procura de um hospital próximo que pudesse prestar melhores cuidados à vítima, livrando-se dos curiosos e de inúmeros palpites inúteis. Dentro do resgate, os profissionais do socorro rápido continuavam o trabalho:
–– Tenente! Ele está sem os documentos. Será que a carteira dele ou algum outro pertence de identificação pessoal não caiu no local do acidente?
–– Não, parece que não. Fizemos as devidas buscas nas imediações da ocorrência do sinistro e não encontramos nada além dessa sacola de livros comprados pelo acidentado num sebo. Algum vagabundo pode ter se aproveitado da situação para furtar a carteira com os documentos dele. Nós deixamos dois soldados nas imediações da ocorrência para que as buscas e investigações continuem.
–– E agora, Tenente? Qual será o próximo passo?
–– Vamos deixá-lo no hospital. Ele corre risco de vida, muito embora, pela experiência médica que tenho, acho que ele se safará desta. Logo a família vai procurá-lo, talvez ele até acorde antes e, então, o hospital se encarregará de fazer contato com algum parente ou conhecido indicado por ele. Já sabe para qual hospital iremos, soldado Ramos?
–– Já temos rumo certo, Tenente! O hospital para o qual vamos não fica muito perto daqui, todos os hospitais da região estão lotados e só encontramos vaga neste aqui, dá uma olhada no endereço, eu anotei neste papel.

* * * * * * *

Naquele dia, pela manhã, Alberto e Mirtes foram ao banco e ao supermercado onde fizeram algumas compras para o Natal. Alberto havia recebido o 13º salário. Quando chegaram em casa, o professor brincou de carrinho com Betinho e de video-game com Raphael, almoçou com a família e, ainda, ajudou Mirtes a arrumar a cozinha. Por volta das duas horas da tarde, Alberto já havia tomado banho e trocado de roupa para sair, estava ansioso:
–– Mirtes, eu já estou de saída.
–– Aonde você vai mesmo, amor?
–– Basicamente ao centro, quero ver se encontro algumas brochuras nas livrarias e sebos. Vou às livrarias da Paulista, talvez eu também faça uma visita ao MASP. Voltarei caminhando de lá até à Sé.
–– Não é um trecho muito longo para se fazer caminhando, Alberto?
–– Mirtes, eu gosto destas caminhadas, principalmente naquela região que para mim é muito atrativa.
–– Tá bom, mas não chegue muito tarde, querido.
–– Tchau, Mirtes.
Alberto, então, saiu de casa de mãos vazias. No caso dele, mãos vazias significavam não haver levado nenhum livro ou revista para a inevitável leitura no itinerário do ônibus, todas as pessoas que conhecem o professor sabem que é comum surpreendê-lo lendo frequentemente em qualquer lugar, até acompanhado pelas chacoalhadas e freadas bruscas dos desconfortáveis ônibus paulistanos. Desta vez, porém, Alberto decidiu que acompanharia pela janela do coletivo o desenrolar da vida e a paisagem urbana nas ruas e avenidas de São Paulo durante o trajeto que o ônibus percorreria do Ipiranga até a avenida Paulista. O professor estava com todo o seu itinerário pronto e alguns trocados no bolso, ele conhecia vários sebos, livrarias e locais de arte e cultura no centro da cidade. Aquela região proporcionava ao mestre um farto mundo de descobertas e conhecimentos literários e culturais. Alberto sentia-se em casa e bem servido quando caminhava pelas ruas do centro de São Paulo. Nas épocas de férias escolares, ele passava horas e horas procurando por livros raros dentro das livrarias e, principalmente, dos sebos que são muito comuns nas ruas próximas da praça da Sé e do bairro da Liberdade: –– “Quanta raridade! A literatura é infinitamente fascinante!” –– entusiasmava-se ao tatear as intermináveis fileiras de livros. Naquela oportunidade o professor não tinha preferência por nenhum título ou gênero de livro pré-definido, garimparia aleatoriamente milhares de brochuras à procura de tesouros literários, assim seria mais emocionante. Não tinha pressa, a tarde inteira estava à sua disposição.
Na avenida Paulista, o professor tinha suas livrarias prediletas, embora quase não comprasse livros por ali, utilizava-as mais para se atualizar e o fazia folheando os novos títulos lançados no mercado: –– “Os livros estão cada vez mais caros, meu Deus! Não, acho que não estão, é o dinheiro que anda cada vez mais curto. Não há preço que pague o conhecimento. O que será da cultura desse País? Nem ler podemos mais. A leitura e o conhecimento viraram artigos de luxo.”  –– assim Alberto desabafou consigo mesmo em oportunidade anterior onde ali esteve.
 Chegando à Paulista, próximo à estação do metrô Consolação, o professor se babava todo de vontade de comprar pelo menos uns cinco livros que acabava de ver nas vitrines da livraria Cultura. Alberto demorou-se pouco naquela e em outras livrarias da famosa avenida, pois estava decepcionado com a impossibilidade de aquisição de títulos novos e lançamentos devido aos parcos trocados de que dispunha: –– “Que beleza este livro contém a obra inteira do Drummond! Mas custando quase trezentos reais, não é pro meu bico. Deixa quieto.” ­­–– faltou-lhe vontade para folhear a belíssima edição quando viu o preço. Alberto desistira das livrarias e já caminhava pelas largas calçadas da Paulista rumando em direção ao MASP. Passou pelo museu também rapidamente. Na verdade, o professor estava mesmo era louco de vontade de visitar os incontáveis sebos do centro da cidade onde os preços eram mais convidativos e tinham a medida exata de seu bolso.
Durante a longa caminhada entre a Paulista e a Sé, algo que duraria mais de uma hora, Alberto olhava para os inúmeros prédios e fartava-se observando a urgência e o tédio melancólico da vida diurna paulistana: –– “Como, às vezes, o paulistano precisa desse tempo.” –– pensava –– “A solidão urbana nesta cidade enlouquecida é uma espécie de bálsamo para nós: moradores. Adoro o estilo de vida desta cidade. São Paulo, como és misteriosamente linda! São Paulo, ainda há quem olhe para ti e não sinta a necessidade da tua transitória solidão!”  –– lembrava-se do trecho de um poema que havia lido, não se lembrava onde, quando era ainda muito jovem, na época Alberto havia achado o poema meio bobinho, mas agora descobria a sinceridade que havia nele.
Saindo do MASP, o professor continuou sua caminhada pela calçadas da avenida Paulista de onde acompanhava a loucura do trânsito paulistano, carros e mais carros passavam levando gente apressada, afoita e tensa nos seus interiores. Havia também os motoristas estressados, os motoristas exaustos, os motoboys sempre atrasados riscando a avenida por entre os carros numa espécie de malabarismo quase suicida. O professor sentiu-se feliz por ter o privilégio de estar apenas caminhando.
Alberto agora deixava para trás a avenida Paulista e iniciava a longa descida pela avenida Brigadeiro Luís Antônio em direção à região central da cidade. Passando pela também movimentada avenida, o mestre por breve momento pensava em quanta poesia devia ter sido criada por Adoniran Barbosa naquelas imediações onde fica o bairro da Bela Vista, popularmente conhecido como o bairro do Bexiga. Atravessou a avenida 13 de maio por baixo do viaduto, e continuou a caminhada pela extensa descida: –– “Deve ser duro para os participantes da São Silvestre subirem esta avenida bem no final da corrida, até a descida parece cansativa” –– refletiu o mestre sobre os competidores que passariam por ali na semana seguinte. Enquanto aguardava que os sinais se abrissem para ele nas faixas de pedestre, Alberto presenciava novamente a tensão do trânsito maluco de São Paulo, era o xingamento que um motorista fazia a outro, era um motoboy que encostava no vidro de algum carro para insultar quem se encontrava no interior do veículo, e refletia em silêncio: –– “Que loucura! Os motoristas estão cada dia mais malucos. O trânsito desta cidade virou um campo de guerra. Ninguém se respeita mais. A boca deste povo está cada vez mais suja. Tá loco, seu!”.
O professor, enfim, alcançou a praça Pérola Byington e em seguida o viaduto Dona Paulina de onde pôde avistar um trecho da avenida 23 de Maio, parou sobre a ponte para acompanhar os veículos que passavam em alta velocidade pela extensa avenida: –– “Como a solidão e esta vida urbana de São Paulo me faz bem, como ela é necessária também para mim. É estranha a sensação de estar sozinho em São Paulo. A cidade parece nos fazer uma companhia oculta e constante.” ––os pensamentos do professor vagavam enquanto ele atravessava o farol de pedestres do viaduto dona Paulina: –– “Acho que primeiro vou à rua São Bento, tem um sebo ótimo por lá, depois volto” –– resolveu-se por esta pequena alteração no seu itinerário.
Eram quase seis horas da tarde quando Alberto começou a adentrar os sebos próximos à região da Sé e da Liberdade, saiu de um deles feliz da vida com um saco de livros nas mãos. Parou numa padaria da região para tomar um cafezinho e comer um pão de queijo, teve ainda tempo para bisbilhotar algumas revistas numa banca de jornal. Olhou para o relógio e se assustou, quase oito horas da noite: –– “Esse horário de verão deixa a gente confuso, o ponteiro do relógio destoa da evolução do dia. A Mirtes e as crianças devem estar à minha espera, preciso ir embora” –– avaliou. Alberto parou em frente à faixa de pedestres do começo da avenida Liberdade e esperou que o sinal se abrisse para ele, quando isso aconteceu, o professor não notou que um carro infringindo o sinal vinha em altíssima velocidade em seu encontro. O professor nada pôde fazer, não deu tempo nem de correr porque estava no meio da pista.

* * * * * * *

Enfim, o resgate chegou ao hospital. Alberto permanecia imobilizado e inconsciente. Os zelosos profissionais do corpo de bombeiros passaram as devidas informações ao setor administrativo daquela unidade, deixando o professor aos cuidados do pronto-atendimento e partiram logo em seguida para mais uma noite de correrias, salvamentos e prestação de socorro a muitas outras vítimas do caótico e violento trânsito paulistano. Alberto de imediato foi conduzido à sala do pronto-atendimento do hospital sob os cuidados do doutor Milton Fourillon que o examinou e imediatamente realizou vários exames no acidentado. Logo ao verificar os exames, o experiente médico concluiu que não havia nenhuma fratura ou qualquer problema que comprometesse a vida do acidentado, o professor continuava inconsciente devido ao impacto e ao susto causado pelo acidente, o doutor Fourillon sabia que logo Alberto retomaria a consciência. Alberto, como previra o tenente do resgate, havia se safado do acidente. Porém, de súbito, um estranho brilho nos olhos e um sorriso sinistro se abriu no rosto do dr. Fourillon quando terminou de averiguar os últimos exames realizados em Alberto: –– “Finalmente você chegou, eu sabia que você viria. Era só uma questão de tempo” –– sussurou o médico consigo mesmo enquanto relia todos os exames do professor na mesa de sua sala: –– “Agora sim. Mãos à obra Fourillon, você precisa agir rapidamente e nunca mais pisará no chão desta insuportável clínica e nem colocará mais as mãos nesses doentes fedidos cheios de doenças e dores sem fim. Fourillon, Fourillon, quantas vezes você arriscou a sua própria saúde cuidando desta gente nojenta, hein? Agora é justo que você mereça uma retribuição também, não é?” –– meditava o estranho médico que se levantou da cadeira e dirigiu-se à porta de entrada de sua sala encontrando uma enfermeira que por ali passava:
–– Enfermeira, por gentileza, chame o dr. Demóstenes aqui, é urgente, sim?
–– Claro, doutor Fourillon. Mas, há algum problema?
–– É... este homem que acabou de chegar, o atropelado, estive verificando os exames dele, está muito mal, sabe. Ele está entre a vida e a morte, eu preciso do dr. Demóstenes aqui rapidamente para me ajudar.
–– Pode deixar que eu já estou indo chamá-lo, dr. Fourillon.
–– Muito obrigado, enfermeira. Você é muito gentil e prestativa, eu agradeço pelo paciente.
O médico voltou à sala do pronto-atendimento no 3º andar do hospital para averiguar como estava Alberto. Verificou que o professor começava lentamente a movimentar os pés e as mãos dando claros sinais de que iria despertar a qualquer momento. O dr. Fournillon decidiu aplicar um sedativo no acidentado para que ele não despertasse: –– “Sossega, leão! Sossega! Daqui a pouco você verá São Pedro de perto, veja que privilégio você terá!” –– pensava em algo malévolo o esquisito médico enquanto via o acidentado parar de movimentar totalmente os membros sob o efeito imediato do fortíssimo sedativo.
Toc, toc, toc... Toc, toc, toc...
–– É você, Demóstenes?
–– Sim.
–– Entre, meu chapa. Eu já estava ansioso à sua espera. Veja só, o nosso homem finalmente chegou!
–– Não brinca, Fourillon. –– disse o aparentemente jovem médico ao observar e admirar o professor ali estirado na padiola, coberto por um lençol dos pés até o pescoço.
–– É verdade, ó ele aí! Papai do céu mandou ele pra gente! Acho que foi o papai Noel que veio entregar. Ele é o nosso presente de Natal, Demóstenes!
–– O material está bom?
–– Está... Eu já vi todos os exames. O nosso dia de sorte finalmente chegou, Demóstenes. Foram quatro meses de espera, mas valeu a pena. Até que enfim caiu em nossas mãos um motorzinho jóia.
O dr. Fourillon olhou para o dr. Demóstenes com um sorriso silencioso e maquiavélico que ia de canto a canto da sua boca, a idéia diabólica agora passava por sua cabeça. Demóstenes sentou-se receoso e irrequieto com o que estava prestes a acontecer. Parece que o fim da linha chegou para aquele que um dia foi o cidadão Alberto, um dedicado professor.

* * * * * * *

10 - O sacrifício asteca

Fora a fragilidade da máquina humana, o mundo está cheio de perigos ocultos e inesperados que põem em risco a sobrevivência do homem. Múltiplas ocorrências, danosas à existência, leva-nos a crer que ultimamente o simples ato de viver não vale quase nada. São tantos os perigos contra a humanidade –– assaltos, tragédias, balas perdidas, doenças, terremotos, furacões –– enfrentados constantemente, que nos levam a crer que vivemos sempre caminhando sobre ovos. Agora, em um ponto haveremos de concordar, que bem se note, acreditamos que hospital é local onde se busca tratamento, repouso e recuperação para os doentes. Mas, bem... cada caso tem a sua história...
O professor Alberto foi induzido por mais algum tempo ao estado de inconsciência, estando, ainda, sem identificação num leito hospitalar e a mercê de um médico mal intencionado, que se utiliza da nobre profissão a fim de obter vantagem financeira ilícita com o tráfico do coração do pobre professor. Fourillon tem tudo preparado para realizar o seu intento, aproveitava-se dos fatos que conduziram o homem apropriado para o transplante criminoso que realizará. O diabólico médico, cardiologista experiente, arquitetou o plano desumano cuja finalidade é a obtenção de um coração, custe o que custar, para um riquíssimo empresário que pode morrer a qualquer momento se depender da fila de espera para transplante de órgãos. Na realização deste ato horrendo, o Dr. Fourillon conta com a cobertura de um grupo de apoio externo e, dentro do hospital, apenas o Dr. Demóstenes e o Dr. Rubens, respectivamente um fisiologista que o auxiliará na retirado do órgão e um legista que se encarregará da necropsia do corpo, sabem do enredo macabro. Neste momento, o Dr. Fourillon tem o homem inconsciente sob seu domínio, mas precisa de auxílio para realizar a cirurgia de retirada do órgão, não pode contar com os serviços de enfermagem, as enfermeiras nem sonham com o que estava prestes a acontecer –– “Essas enfermeiras estúpidas têm a língua solta, Demóstenes. Nunca devemos confiar nelas.” –– afirmou certa vez Fourillon. Sendo assim, o médico maldito requisitou, previsivelmente, que viesse em seu auxílio o Dr. Demóstenes, um jovem em início de carreira, que se demonstrava ser um tremendo picareta que topava qualquer coisa por dinheiro. No entanto, Demóstenes demonstrava-se cada vez mais assustado com o iminente ato de crueldade que Fourillon anunciava dentro da sala do pronto-atendimento:
–– Fourillon, eu não sei o que dizer, sinto-me eufórico e ao mesmo tempo receoso. Será que...
–– Você tá com medo, Demóstenes?
–– Não, não é medo. É que é difícil não me colocar na posição deste indivíduo. –– falava o dr. Demóstenes apontando para Alberto –– Ele deve ter família, tem uma história de vida, deve ter planos e...
–– Eu não vou nem deixar você continuar, Demóstenes! Esperamos bastante e agora que tudo está propício para o cumprimento da nossa tarefa me vem você com esse nhem, nhem, nhem! Pare com isso já!
–– Desculpe-me, Fourillon. É que eu sou muito temente a Deus.
–– Ah! Larga a mão, vai! Que Deus? Que Deus? Você também acredita que um velhinho de barbas brancas que mora sobre as nuvens está vendo o que vai acontecer aqui! Demóstenes, de uma vez por todas, para com este papo, meu! Ouça bem o que vou dizer: Deus não existe, meu! Deus nunca existiu e nunca existirá! Quer ver só? Se ele realmente existe por que é que não vem até aqui para salvar este homem da morte certa nas nossas mãos? Será que você não vê que o todo-poderoso Deus não pode fazer nada por este desgraçado?
–– É que eu não sei se devemos...
–– Demóstenes, você ainda é um bebê de colo perto da minha longevidade médica. Você começou nisso faz pouco tempo, no entanto, eu tenho mais de trinta anos de profissão, eu não aguento mais isso aqui, meu! Eu não quero morrer aqui dentro. Veja bem, temos o homem certo na hora certa, os exames demonstram que todos os requisitos de que precisávamos este cara apresenta, o sangue é ideal, o coração bate mais compassado que pandeiro em roda de samba, ele está inconsciente, a família está longe, e tudo o mais. Ele é apenas mais um entre bilhões de seres humanos desgraçados no mundo, não é justo que ele viva e um empresário bilionário, um homem que se propôs a nos pagar –– dez –– milhões –– de –– dólares –– por este simples trabalho, morra. Se o controle das empresas deste empresário passar para as mãos dos herdeiros, todas as empresas dele certamente falirão. E quantas pessoas não perderão o emprego, hein? Por isso é mais justo tentar salvar o empresário da morte do que deixar esse infeliz vivo. É a nossa hora de brincar de Deus, meu chapa! Nós também podemos matar ou fazer viver, não é? Se Deus realmente existisse e fosse tão bom como tantos supõem, ele deveria olhar melhor para os seus filhos e deixá-los viver em paz, sem dores, sem doenças e sem angústias. Demóstenes, Demóstenes, agora é pegar ou largar, se você me abandonar aqui eu terei que seguir sozinho. Não dá para perder essa chance, entendeu meu chapa? Já demoramos demais nesse bate-papo, meu! Desencana logo, vai!
Demóstenes baixou a cabeça como se ela pesasse uns cem quilos, refletiu por um instante e questionou Fourillon que o olhava com firmeza:
–– Como será o procedimento, Fourillon? Eu não posso desistir agora, tenho dois apartamentos nos Jardins com cinco prestações em atraso cada um e corro o risco de perdê-los na Justiça.
–– Apartamentos? Esqueça-se disto. Depois da realização deste servicinho simples nunca mais você precisará trabalhar em sua vida. Vou explicar o procedimento, é muito fácil, abriremos o peito do cara e arrancaremos o coração dele, logo em seguida, pegaremos um táxi e, com o órgão já devidamente acomodado para transporte, iremos ao encontro de um helicóptero que se encarregará de nos levar até um jatinho fretado, temos poucas horas, mas já está tudo no esquema, todo o grupo já foi avisado de que temos a mercadoria nas mãos. Entretanto, é preciso agir com rapidez, devemos chegar o mais rápido possível ao nosso destino. Não podemos errar.
–– E a família deste homem?
–– Nem sabe que ele tá aqui, mas por precaução vou avisar a essas recepcionistas e enfermeiras idiotas deste mausoléu para não comunicarem a ninguém durante os nossos trabalhos, não podemos admitir que ninguém nos atrapalhe enquanto trabalhamos.
–– Não tem como descobrirem este esquema, Fourillon?
–– Deixa de ser cagão, Demóstenes! Já conversamos sobre tudo antes. Quando você ouviu falar do dinheiro que receberia pelo serviço, aceitou na hora, não é? Agora você parece que quer dar pra trás! Chega, né!
–– Não é isso, Forillon.
–– É praticamente impossível alguém desconfiar de alguma coisa, daqui até a sepultura o nosso grupo agirá com perfeição, da necropsia até o enterro deste infeliz o esquema está totalmente armado, Demóstenes. Chega de papo, vamos agir, já perdemos tempo demais. Leve o cara rápido para a sala de cirurgias deste andar mesmo e vá preparando a instrumentação, eu vou conversar com essas recepcionistas e enfermeiras estúpidas para não nos interromperem. Ok?
Depois de avisar as enfermeiras de que não deveria ser interrompido em hipótese alguma durante o procedimento no qual tentaria, segundo ele, salvar a vida do homem acidentado que “estava entre a vida e a morte”,  Fourillon guardou todos os exames de Alberto na gaveta de sua mesa, preparou a mala para o transporte do órgão, entrou e fechou a sala de cirurgia por dentro, desinfetou as mãos, pôs as luvas cirúrgicas, o avental e a máscara de rosto, parou por um instante observando o dr. Demóstenes que se movimentava coordenadamente na frente da mesa cirúrgica preparando a vítima para o corte que daria início ao ato macabro:
–– Como é Demóstenes, já abriu o peito do cara?
–– Não, Fourillon. Na verdade, eu nem sei fazer isso direito, você sabe que a minha especialidade é fisiologia.
–– Tá bem, tá bem. Deixa que eu cuido disso, adoro quebrar um peito no meio. Veja só como é baba.
Fourillon aproximou-se da mesa cirúrgica e, em poucos minutos, deu conta do recado:
–– Agora você segura um lado das costelas que eu seguro o outro. Isso, isso, assim mesmo, vamos abrir a gaiola bem devagar que eu quero logo esse passarinho na palma da minha mão.
Demóstenes de olhos esbugalhados suava frio enquanto à sua frente Fourillon conduzia tranquilamente todos os procedimentos cirúrgicos:
–– Que beleza! Foi mole, não? Olha o coraçãozinho lá, parece novinho em folha, está funcionando igual a um relógio suíço e quase não se vê gordura em volta dele o que é muito importante.
Mesmo sendo abafadas pela máscara de rosto, as palavras de Fourillon alcançavam perfeitamente os ouvidos do assombrado e medroso Demóstenes. Elas iam explicando detalhadamente cada passo do processo que se seguia para a retirada do coração do professor Alberto, as palavras do velho médico demonstravam também indiferença e sordidez diante da vida de um homem inconsciente e, agora, praticamente morto:
–– Estes bisturizinhos são jóias, né? Cortam até pensamento. Daqui a pouco o motorzinho se desprega do peito do cara, você vai ver que maravilha, Demóstenes. Estou adorando isso tudo. A prática de retirada de corações de seres com vida é muito antiga, os astecas, por exemplo, sacrificavam vítimas em praças públicas arrancando-lhes os corações que eram depois oferecidos aos seus deuses. Devia ser um espetáculo lindo de morrer, não acha? E naquela época não tinha essas molezas de hoje: anestesia, bisturi, tesouras, luvas e tudo o mais.
Demóstenes acompanhava tudo em silêncio e estava cada vez mais assombrado com a tranquilidade do velho Fourillon. O jovem médico já tinha presenciado fatos inusitados em poucos anos de profissão, porém nunca havia visto um ato de tamanha frivolidade e maldade como aquele do qual era cúmplice, era-lhe difícil esconder o nervosismo e também era tarde para desistir.
–– Você está tremendo, Demóstenes! Tá com medo? Não se espante meu amigo, olha só, é como tirar pirulito da boca de criança.
Fourillon rompeu cuidadosamente as últimas artérias que ligavam o coração ao corpo de Alberto, solicitou que Demóstenes se encarregasse da limpeza e da sucção da mistura de água e sangue que encharcava o peito do professor. E o velho médico retirando definitivamente o coração do corpo já sem vida de Alberto, o levantou nas mãos como se envergasse um troféu:
–– We are the champions, my friend! O motorzinho já está nas nossas mãos, Demóstenes! O resto não tem serventia nenhuma. Pode fechar o presunto enquanto eu guardo a mercadoria milionária.
–– Eu costuro ou cauterizo as veias e artérias, Fourillon?
–– Sei lá, vê o que é mais fácil. Pode costurar veia com artéria, pode costurar ou cauterizar tudo junto, só não deixa ficar vazando muito sangue. Mas faça isto rápido! Devemos partir imediatamente.
Em poucos instantes os dois médicos abandonavam o corpo de Alberto num dos quartos do hospital e rapidamente se encaminharam até a enfermaria. Fourillon estava com a mala que transportava o órgão nas mãos, mas a enfermeira-chefe nem se deu conta do fato, na realidade ela nunca havia visto uma maleta daquelas e muito menos imaginaria que ali dentro havia o coração recém-arrancado de um dos pacientes:
–– Dr. Fourillon e Dr. Demóstenes, boa noite! E a cirurgia foi bem, conseguiram salvar o homem?
O Dr. Demóstenes baixou a cabeça meio sem graça, enquanto o experiente e tarimbado Dr. Fourillon respondia a pergunta da enfermeira-chefe de forma melancólica e triste:
–– Infelizmente o socorro, quando não há mais esperança, quem dá é Deus, né? Tudo o que podíamos fazer, nós fizemos.
–– O resgate encontrou os documentos do acidentado, ele se chamava Alberto e era professor, coitado, né Dr. Fourillon? A família já foi avisada e os parentes do falecido estão se encaminhando pra cá, eles terão um choque quando souberem, pobrezinhos.
–– Dona Luísa, eu e o Dr. Demóstenes temos uma emergência em outro hospital e temos que ir agora, é muito urgente. O Dr. Rubens já está vindo buscar o corpo para a necrópsia, não deixe que ninguém toque no corpo que não seja ele, entendeu? Mas me diga uma coisa, Dona Luísa, estou preocupado com os doentes que ficarão, como está a movimentação neste hospital agora?
–– Olha, dr. Fourillon, até que está tudo tranqüilo por aqui. O Dr. Queirós já chegou e o Dr. Jacinto está a caminho. Acho que o senhor e o Dr. Demóstenes podem ir tranquilamente atender a emergência que têm.
–– Até logo, Dona Luísa. Vamos, Demóstenes!
–– Até logo, doutores! –– “Eu, hein! É cada médico louco que me aparece neste hospital, parece até que saíram do filme do Franknstein. Cruz credo!” –– ponderou a enfermeira-chefe enquanto via os dois médicos cochichando e olhando para os lados muito desconfiados.
Fourillon e Demóstenes desapareceram rapidamente pelos corredores iluminados do hospital. Dona Luísa, a enfermeira-chefe, permaneceu na enfermaria que dava acesso aos diversos quartos daquele andar, pois havia apenas mais duas enfermeiras auxiliares para atender o hospital inteiro, já estávamos quase na véspera de Natal e somente quem já precisou de hospitais nessa época do ano sabe como é precário o atendimento por falta de funcionários. Dona Luísa encarregou-se de aplicar os medicamentos nos pacientes dos quartos próximos à enfermaria, e lá ia ela com a sua bandejinha cheia de injeções preparadas andando pelo corredor que dava acesso aos quartos, –– “Amor, I love you... Amor, I love you... Amor, I love you... Amor, I love you... Deixa eu dizer que te amo... Deixa eu gostar de você...” –– cantarolando alegremente.
Quando saiu de um dos quartos e voltou ao corredor presenciou uma cena que jamais havia visto em toda a sua vida, viu saindo do quarto onde estava o corpo do professor Alberto uma luz muito forte, era como se vários relâmpagos houvessem se encontrado ali ou uma estrela tivesse caído dentro daquele quarto, para se ter uma idéia a claridade silenciosa que dali fluía, fazia com que as luzes do corredor daquele hospital parecessem fósforos acesos, aquela misteriosa iluminação espantou e cegou a enfermeira-chefe por alguns segundos. Dona Luísa fechou os olhos que ardiam e se abrigou assustada de volta ao quarto do qual tinha acabado de sair: –– “Vou pedir ajuda, deve ter estourado a caixa de força. Caramba! Só tem telefone na enfermaria. Que droga! Só falta eu morrer queimada aqui dentro.” –– Quando a curiosidade fez com que ela espiasse pela brecha da porta do quarto em que estava, Dona Luísa notou que a luz havia desaparecido completamente: –– “Será que eu tô vendo coisa?” –– e tudo voltara ao normal, porém, vagarosa e desconfiada, ela decidiu verificar o quarto onde estava o corpo de Alberto aguardando a chegada do médico legista. Dona Luísa entrou no quarto e não viu nada que parecesse queimado ou danificado, olhou novamente para o quadro de força na parede e para os aparelhos que ali estavam: –– “Que estranho!” – pensou. Ela não sabia que o mais estranho ainda estava para acontecer. Quando ela se virou para o leito de Albeto, viu o homem estava sentado na cama. O professor, mirando a espantada enfermeira-chefe, indagou:
–– O que é que eu estou fazendo aqui? Alguém pode me explicar o que aconteceu? Eu só me lembro da batida.
A enfermeira se assustou e até pensou em sair correndo, mas lembrando-se do Dr. Fourillon, preferiu continuar por ali: –– “É cada médico xarope que tem neste hospital!” – resmungou.
–– Ué, o senhor tá vivo?
–– Parece que sim. Não era para estar? Há algum problema, enfermeira?
–– Não, é claro que não. Graças a Deus que o senhor tá vivo, né? É que depois do atropelamento trouxeram o senhor para este hospital e os médicos tiveram que submetê-lo a uma cirurgia, o senhor estava entre a vida e a morte.
Alberto tateou o corpo inteiro:
–– Não sinto nenhum corte ou sinal de cirurgia no meu corpo, essa cirurgia deve ter sido feita em outra pessoa. Vocês podem ter se enganado.
–– É possível. É possível. Este hospital já é uma lástima o ano inteiro, em final de ano, então, é que a coisa fica pior. Agora deita Sr. Alberto, descansa que a sua família já está a caminho, logo eles chegarão.
Saindo do quarto, Dona Luísa encontrou no corredor o pessoal da necropsia e dispensou todos eles, inclusive o Dr. Rubens, informando-os do equívoco que havia ocorrido. Voltou para a enfermaria, pois depois de tantos anos de profissão já não se espantava com mais nada, sentou-se –– “Deixa eu dizer que te amo. Deixa eu gostar de você...” –– e lembrou-se dos médicos esquisitos: –– “Esse Dr. Fourillon sempre me pareceu meio louco. Cada médico distraído que existe, tá loco! Por isso que eles esquecem tesouras, gazes e outros objetos dentro dos pacientes. É cada um mais xarope que o outro! Coitado do doente que encontrar um tipo desses pela frente!” –– a enfermeira resmungava e balançava a cabeça em sinal de desaprovação.
Pouco tempo depois, Mirtes, Ana e Mário chegaram ao hospital e se apressaram até a recepção onde solicitaram informações sobre Alberto, a recepcionista consultou as fichas das entradas de acidentados daquela noite e informou a eles que havia um homem que dera entrada naquela unidade vítima de atropelamento com as características que haviam descrito e que fora submetido a uma cirurgia de emergência no terceiro andar daquele hospital.
Os três familiares subiram pelas escadas, a aflição do momento não lhes deu chance para que esperassem pelo elevador, e rapidamente chegaram ao terceiro andar. Encontraram na enfermaria a enfermeira-chefe a quem descreveram novamente o paciente e os motivos que o levaram até ali.
–– Eu já estava esperando pelos senhores. Vocês devem ser os familiares do Sr. Alberto, não?
–– Sim, somos nós! Ele está bem? Onde ele está, enfermeira? –– indagou Mirtes afoita e desesperada.
–– Pode ficar calma, minha senhora. Ele está otimamente bem, estive com ele há poucos minutos.
–– E a cirurgia que ele sofreu? –– indagou Mário.
–– Olha senhor, eu nem sei direito o que aconteceu. Os médicos que atenderam o Sr. Alberto tiveram que sair para uma emergência e não me explicaram nada, a única coisa que eu sei é que o homem está bem, acho que não foi nem preciso fazer cirurgia. Ele está naquele quarto ali, podem entrar para vê-lo. –– Dona Luísa indicou o caminho apontando o quarto onde Alberto estava.
Quando Mirtes, Ana e Mário entraram no quarto, eles viram Alberto de pé debruçado no para-peito da janela contemplando o desenrolar da vida noturna paulistana e as infinitas luzes que compõem e iluminam o cenário da gigantesca cidade.
–– Alberto?!
O professor se virou-se sorridente e calmo e os saudou com um singelo:
–– Oi, pessoal! Até que enfim vocês chegaram para me tirar desta espelunca.
–– Você está bem, querido?
–– Nunca me senti tão bem em toda a minha vida, Mirtes! Acho que foi mais um susto do que qualquer outra coisa. Quase não me lembro de nada, só sei que um carro me atropelou e que eu acordei aqui faz pouco tempo.
–– E a cirurgia que nos informaram que fizeram em você? –– questionou novamente Mário.
–– Cirurgia? Que cirurgia, Mário? Não sei, não tenho nada cortado ou costurado. Não sinto um arranhão sequer no meu corpo. Acho que devem ter se enganado de paciente. Onde disseram isto para vocês?
–– Fomos avisados por telefone, Alberto.
–– Estas telefonistas devem estar malucas, Mário! Não houve nenhuma cirurgia. Não vejo a hora de ir embora, estou ótimo. Cadê o médico?
–– Estou aqui, Sr. Alberto. Muito prazer, eu me chamo Dr. Queirós. – apresentou-se o simpático médico ao professor e aos familiares já dentro do quarto.
–– Doutor, estão falando em cirurgia, mas eu não fiz nenhuma cirurgia, eu estou me sentindo otimamente bem!
–– Eu sei disso. Eu encontrei os exames do senhor dentro da gaveta do Dr. Fourillon. Ele foi quem o atendeu na emergência, Sr. Alberto. E como todos os exames indicam que a saúde do senhor está perfeita, não temos razão para segurá-lo aqui. O senhor pode ir para casa com sua esposa, mas fique de alerta, qualquer problema retorne o mais rápido possível. Tudo bem?
–– Muito obrigado, Dr. Queirós. –– agradeceu Alberto.
Quando o médico, Mirtes, Ana e, por último, Mário saiam do quarto para que Alberto pudesse se prepara para ir embora, o professor chamou:
–– Mário, por favor, venha aqui!
Mário voltou para o quarto atendendo ao pedido de Alberto, na certa o professor precisava de alguma ajuda para ir ao banheiro ou se locomover:
–– Fala, Alberto?
–– Mário, sobre aquele nosso papo daquele dia...
–– Alberto, eu não quero mais falar sobre isso, pode ficar sossegado, eu vim aqui apenas em solidariedade por causa do acidente que você sofreu.
–– Mário, eu estive pensando muito ultimamente e não vejo a hora de participar das reuniões do PSE, quero que você traga o calendário com todas as datas, quero participar das reuniões.
Mário se surpreendeu com as palavras de Alberto, não era exatamente o que ele esperava ouvir, mas abriu um sorriso largo para o cunhado:
–– Tá certo, Alberto. É assim que se fala, meu velho. Você não vai se arrepender de participar das reuniões. O PSE estará de braços aberto para recebê-lo.


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11 - Reuniões

–– Meus caros ‘pesselistas’! É com imensa satisfação que abro esta primeira reunião de 2005 aqui na sede do PSE em São Paulo. Meus queridos companheiros, na eleição do ano passado o nosso partido conquistou várias prefeituras no país, inclusive em algumas capitais e em cidades de grande porte industrial e econômico de alguns Estados brasileiros, nada disso teria acontecido se todos nós com muito trabalho e união não tivéssemos enfrentado as adversidades financeiras internas por que passou o PSE em 2004. Sabemos por intermédio de nossos poucos, porém leais, representantes do PSE em Brasília que o governo federal está enchendo os cofres de alguns partidos de dinheiro, não sabemos de onde vem este dinheiro, mas o fato é que o governo federal tem as chaves do ouro nas mãos. Pois bem, o dinheiro que é injetado nos partidos e nos políticos em Brasília não é de graça, trata-se de uma troca, o governo federal precisa ter a maioria no Congresso Nacional se quiser governar, e apenas o PSE, outros partidos de pequeno porte e a oposição da ocasião não estão vendo a cor deste dinheiro, o nosso partido por ter pouca representatividade em Brasília continua esquecido e desprezado. Não há em nosso caixa uma pataca furada que tenha vindo do governo federal, lamentamos muito este fato, foram muitos os companheiros do nosso partido que não puderam arcar com o pagamento do que deviam depois de suas campanhas, infelizmente o partido não pôde ajudá-los, muitos destes fiéis ‘pesselistas’, quero com estas palavras prestar-lhes uma singela homenagem, pois eles, mesmo assim, continuam firmes e fortes dentro do PSE sem sustentarem mágoas ou quaisquer espécies de rancor ou vingança, apenas aguardam os seus lugares ao sol. Por tudo isso, tenho certeza de que, aos poucos, trabalharemos como sempre fizemos e no ano que vem quando ocorrerão as eleições de 2006 para governadores, presidente, senadores e deputados estaduais e federais, nós nos tornaremos mais fortes e influentes em Brasília e em todos os Estados brasileiros exigindo do governo federal mais consideração e respeito com a nossa legenda partidária. Estamos na semana que antecede ao carnaval, sabemos que este ano não haverá eleições, mesmo assim esta é a hora de arregaçarmos as mangas e iniciarmos os trabalhos para as eleições do ano que vem. É a hora do plantio e todos vocês, meus queridos ‘pesselistas’, verão que a colheita será farta e próspera. Muito obrigado a todos os presentes!
Alberto e Mário estavam presentes e acompanharam o discurso do doutor Tavares, que viera de Brasília especialmente para a primeira reunião do ano do PSE em São Paulo. Alberto parecia entusiasmado com os aspectos mirabolantes que o discurso do doutor Tavares ganhava junto aos espectadores. Tavares era um ótimo orador. O professor, devido aos comentários que os partidários faziam naquele auditório, percebeu a importância da boa oratória a um político profissional.
–– Alberto, este que acabou de falar é o presidente nacional do PSE, ele se chama Tavares, por respeito, pelo tempo de partido e pela experiência política que ele tem, todos nós do partido o tratamos por doutor Tavares.
–– Ele discursa bem, não é, Mário?
–– Precisa ser assim. Costumo dizer, Alberto, confesso que agora tenho mais liberdade de conversar estas coisas com você depois das longas conversas que tivemos ultimamente e de perceber que você compreende o funcionamento da política nacional mais claramente, que um político não precisa ser político, basta apenas que ele pareça um político, e este velho que acabou de discursar sabe disto muito bem. Ninguém nasce político, Alberto, mas todos nós nascemos fazendo política. Por exemplo: o ato do bebê que chora querendo mamar já tem natureza política, se ele não chorar, não mama, entendeu? O bom político é um verdadeiro ator, Alberto, e se você gostar da coisa de verdade eu vou ensiná-lo a ser político.
–– Mário, eu estou adorando me aprofundar na vida política. Tenho lido poucos, mas bons livros sobre diversos assuntos relacionados à política, à oratória, à persuasão, à criação dos partidos e me interessado por tudo o que está relacionado ao mundo político, acho que quero entrar de cabeça nesta atividade. Quero participar de todas as reuniões do PSE para me familiarizar com o partido e, quem sabe, tentar uma investida na carreira daqui a algum tempo. Eu também vou confessar uma coisa para você, eu não estou mais aguentando esta vidinha de professor, parece que tenho até alergia das salas de aula e daquele bando de alunos idiotas e mal-educados que nunca vão aprender nada mais que operações de subtração na vida.
–– Agora você falou pouco, mas falou bonito, Alberto! Continue conosco que assim que eu tiver uma oportunidade vou arrumar um esquema bom para colocar você na crista da onda. Você vai até esquecer que existe escola, meu bom!
A pequena pausa na reunião foi interrompida pelo anuncio vindo das caixas de som espalhadas pelo ambiente: “Convocamos agora para o prosseguimento desta reunião de hoje o melhor articulador político do PSE, um homem que muito contribui para a expansão do nosso partido, por gentileza a palavra lhe pertence doutor Mário”. Mário dirigiu-se ao microfone e com o dedo em riste, começou o discurso:
–– Colegas de partido, faço minhas as palavras do nosso querido presidente. Precisamos iniciar a nossa campanha em busca de mais espaço na cena política federal. Quero expor a todos vocês o que estou preparando para o PSE, ando em contato constante com várias agências de publicidade e propaganda, com as mais conceituadas e procuradas, diga-se de passagem, na tentativa de construir uma imagem sólida do nosso partido no Brasil. Chegou o momento de deixarmos o amadorismo político de lado para nos tornarmos políticos conhecidos e respeitados nacionalmente, tudo isso só será possível com uma propaganda muito bem feita. Em política a única coisa que se precisa é aparecer para aparentar alguma importância. Por enquanto, as nossas negociações estão mais avançadas com a agência de publicidade nacional do marqueteiro, ou melhor, publicitário, ele não gosta de ser chamado de marqueteiro, Chiquinho Sollo. Está quase tudo acertado, sendo praticamente certo que ele será o divulgador do nosso partido no país todo. Concedo-me, colegas, se me permitem, um pouco deste espaço para parabenizar também a militância do PSE que anda fazendo um trabalho excepcional, um exemplo desta militância está presente na reunião e pretende participar de todas as nossas próximas reuniões, os militantes não participam destas nossas reuniões fechadas, mas este militante que hoje está entre nós, a partir de hoje não será apenas um mero militante, ele será mais um de nós. É com grande satisfação que eu gostaria de lhes apresentar o professor Alberto Monteiro, um homem que durante anos vem trabalhando silenciosamente pelo PSE junto a escolas, a outros professores e, principalmente, alunos e familiares nas regiões do Ipiranga, Mooca, Vila Prudente e imediações, este homem é um exemplo para todos nós e tenho certeza de que este partido deve muito à presença oculta e ignorada deste militante. Quero conceder neste momento, com a permissão dos senhores, a palavra ao professor Alberto. Por favor, venha até aqui professor, nós queremos ouvi-lo.
Alberto atendeu prontamente ao chamado do cunhado. O professor apesar de nunca ter palestrado em público sobre assuntos relacionados à política, algo que até pouco tempo repugnava, concluiu de imediato que o que Mário queria na realidade era testá-lo, um raciocínio puramente lógico parecia avisá-lo constantemente do que estava escondido por trás de cada situação imprevisível ou de cada intenção escondida. Alberto adquirira uma malícia que nunca havia tido antes, por isso encarou todos os políticos presentes na reunião e elevando-se à frente dos microfones friamente começou o seu discurso de estréia:
–– Boa noite, amigos. Durante anos, como bem frisou o doutor Mário, trabalhei para o PSE em silêncio, sem ser notado. O partido nunca soube que eu existia, eu era apenas um número a mais nos arquivos do PSE, porém fui um militante ferrenho, destes que dão a vida por uma boa causa, no nosso caso esta causa é a educação, a única testemunha de todo o meu esforço é o dr. Mário. Nenhum outro militante ou político da legenda me conhece porque sempre fui um ‘pesselista’ solitário e aguerrido. No entanto, meus amigos, chega a hora em que o homem deixa a meninice de lado e parte para vislumbrar horizontes mais definidos e reais. Todos nós aqui não somos tão ingênuos a ponto de acreditarmos que este país tirará o pé da lama em questões como educação e cultura em prazo curto, nunca houve interesse dos detentores do poder para que isso acontecesse antes, não é mesmo? Então parei, pensei e comecei a questionar-me insistentemente –– ‘Por que eu serei o único maluco a continuar remando contra a corrente?’ ––, meus queridos amigos, nós do PSE não daremos um passo sequer em qualquer área social se não nos fizermos fortes o suficiente para a conquista do poder, sim o poder, precisamos conquistar o poder custe o que custar. O primeiro passo será nos preocuparmos em dar estrutura e condições de trabalho a todos os políticos e representantes do PSE, vamos parar de uma vez por todas com esse chove não molha de amadores, eu sei que todo mundo aqui quer é se dar bem primeiro, não é? Depois, se for possível, pensaremos na sociedade, todos os partidos e todos os políticos no fundo pensam assim, em primeiro lugar todos querem ajudar a si próprios. Não me venham com qualquer discursinho idealista porque isso não cola mais. Eu, Alberto, dispenso o título de professor da frente do meu nome, gostaria de ser chamado simplesmente de Alberto ou Alberto Monteiro, sou o primeiro a me colocar a disposição do que for preciso para que o PSE conquiste o poder, meus amigos. É claro que devemos manter em nossa cartilha a educação e a cultura como prioridades frente à população e aos nossos militantes, mas aqui no núcleo do partido nós devemos objetivar é o poder, sempre o poder o qual devemos conquistar e continuar nele o maior tempo possível. Obrigado pela oportunidade, meus amigos ‘pesselistas’! Está sendo um prazer conhecê-los! Pensem no que falei, talvez alguns de vocês se espantem com a minha sinceridade, mas lembrem-se de que somente os amigos são sinceros de verdade, não há outro caminho para um partido crescer que não seja a busca incessante pelo poder. Avante, ‘pesselistas’! Boa noite.
Houve um burburinho geral na reunião, todos os políticos presentes queriam saber quem era aquele homem que dividia opiniões já no seu primeiro discurso. Mário estava parado, perplexo e boquiaberto com as palavras que o cunhado acabara de proferir, o seu olhar vidrado e admirado atravessava Alberto e ia além, sua cabeça vagava em questionamentos –– “Este Alberto está me surpreendendo. O que será que aconteceu com esse cara para que ele mudasse tão drasticamente depois daquele acidente? Vai ver que agora acordou de verdade para a vida. Por que será que ele está tão contagiado pela política agora? Bom, o importante é que está se saindo muito bem, parece que Alberto entendeu direitinho o que é a política” ––, mas não via importância em obter respostas imediatas para estas perguntas, o mais significativo naquele momento era o que estava à sua frente, sentia que naquele dia, ali dentro daquela reunião interna do PSE, nascia um grande político. A experiência que tinha neste campo mostrava-lhe isso claramente. Alberto havia sido frio, sutil e persuasivo em seu discurso, algo inerente e necessário a um verdadeiro político. Mário tinha certeza de que se aquele homem continuasse assim, certamente subiria e dominaria qualquer palanque persuadindo e conquistando multidões. Vendo que Alberto vinha ao seu encontro, abriu-lhe os braços e um largo sorriso, como um pai cheio de orgulho receberia um filho:
–– Puuutz, cara! Tô espantado com você!
–– Por que, Mário? Não me sai bem?
–– Não, não é isso. Você se saiu melhor que a encomenda, a nossa mentirinha colou direitinho, né? De vez em quando uma mentirinha cai tão bem na vida política. Mas acho que ninguém esperava que alguém aqui fosse tão objetivo e decidido como você foi. Você está coberto de razões, a conquista do poder é o nosso principal alvo. A única coisa que me espanta é que eu não esperava uma mudança tão radical em você, cara! Mas eu tô feliz, é assim que se faz Alberto.
–– Mário, como eu disse no discurso, chegou a hora de colocar a meninice de lado, eu amadureci politicamente, preciso crescer nisso também, preciso ganhar dinheiro, preciso ter poder, chega de miséria! Sinto que a minha última cartada é a política, Mário! Não posso errar. Estou desesperado e sedento de vontade de me dar bem também, entendeu? Se eu realmente mudei, foi pra melhor.
–– Alberto, era isso que eu sempre quis ouvir da sua boca! Você se lembra quanto eu labutei para que isso acontecesse e eu tenho certeza absoluta que não demorará muito para você começar a se dar bem, pode deixar comigo, vou ensinar-lhe tudo o que aprendi sobre como fazer política. Olha só, alguns amigos estão nos chamando, vamos lá quero apresentá-lo a eles.
Enquanto Mário estava feliz com o início marcante de Alberto no PSE, quem não andava nada contente com as mudanças repentinas do professor era Mirtes. Alberto, depois do acidente ocorrido há cerca de dois meses, tinha mudado muito de comportamento, mas muito mesmo. O seu comportamento em casa havia dado uma meia volta, um giro de cento e oitenta graus. O professor já não lia literatura e poesia como fazia antes, preferia agora ler menos e apenas sobre assuntos relacionados à política, formas de controle de Estado, poder e filosofia, além disso, dava a impressão de que todos os assuntos que Alberto lia atualmente ficavam na sua cabeça por dias, Mirtes o flagrava frequentemente com a mão no queixo, olhando para as paredes ou para o teto, pensando, pensando, pensando... Já não brincava e conversava tanto com as crianças, não demonstrava mais o carinho que tinha por ela como fazia antes, e quando à noite ele a procurava na cama, dava à esposa apenas sexo e quase nenhuma atenção. Mirtes sentia que o marido estava mais sedento e interessado em sexo que nunca, parecia um cavalo que se descontrolava todo ao notar a presença de uma égua no cio, mas não era desse jeito que Mirtes gostava, não era assim que ela queria, precisava dos carinhos que o marido lhe fazia antes de dormir, precisava da voz de Alberto lhe dizendo como fora o dia, precisava sentir-se amada, e tudo isso ela não estava tendo mais. Ainda por cima, Mirtes estava pasma com esse negócio de Alberto entrar na política, ela não estava entendendo nada, o marido que sempre fora um rígido opositor de qualquer proposta política que lhe fizessem, agora não falava em outras coisas que não fosse partido, política e poder –– “Está muito estranho isso. Pensei até que o Alberto havia batido com a cabeça e ficado maluco no acidente?” ––. Essa dúvida fora descartada por exames feitos em laboratório por indicação de um médico neurologista ao qual Mirtes insistiu muito para que o professor fosse duas semanas atrás, é claro que ela não disse a ele que era por causa do comportamento diferenciado que observava, disse-lhe que estes exames seriam para ratificar e certificar-se que sua saúde estava perfeita depois do acidente. Mesmo sabendo que Alberto estava muito bem de saúde e ótimo de cabeça, Mirtes desconfiava que havia algo errado com aquele homem, ele não era nem a sombra do marido que ela conheceu como a palma de sua mão. “Será que é algum mal espiritual?” –– questionava-se também, mas logo descartava a possibilidade –– “Acho que não, nós nunca nos ligamos nestas coisas, nem gostamos de mexer com isto”. Os comportamentos estranhos do professor eram facilmente detectados pela esposa, Mirtes percebeu, embora tenha achado melhor não comentar, que Alberto não havia tocado as mãos em nenhum dos livros que havia comprado no dia do acidente, os livros foram devolvidos a ele na mesma noite em que saiu do hospital, quando o professor chegou em casa atirou-os na dispensa e, desde então, caixas e sapatos velhos faziam-lhes companhia. Mirtes, quando bisbilhotou o saco, viu que ele havia comprado livros aos quais tinha grande estima e muita ansiedade em adquiri-los, estranhava que o marido desprezasse aquela leitura –– “Mas que diabos teriam mordido esse homem? Ele atualmente só quer saber de política, não comenta mais os assuntos da escola, não lê mais poesia e literatura, quase não comenta mais nada da sua vida comigo” –– ela sentia saudade daquele tempo em que Alberto era um simples professor –– “Ah! Deve ser isso. Este envolvimento com política deve estar virando a cabeça do Alberto de vez. Vou ter uma conversa franca com ele. Apesar das dificuldades que temos, nunca precisamos disso para tocar a nossa vida”.
Dias depois veio a conversa e tudo ficou na mesma. Alberto disse à esposa que não havia mudado e que tudo não passava de impressão dela, disse também que havia tomado a decisão de participar de reuniões e se interessar por política porque acreditava no PSE e queria lutar pela causa educacional e, ainda, que estava cansado de dar aulas de Literatura e Gramática e já não aguentava mais entrar na escola, parecia-lhe um sacrifício fora do comum por um mísero salário, por isso não se interessava mais por poesia e romance. Alberto alertou a esposa de que tudo isso era uma decisão sua e uma decisão bem tomada, ele agora queria progredir e não morrer dentro de uma sala de aula, queria tentar algo novo, não estava mais suportando as privações financeiras pelas quais passavam. Mirtes achou estranho tudo aquilo que o marido lhe havia dito, principalmente o fim da relação apaixonada entre ele e a escola, mas decidiu respeitá-lo em suas decisões pessoais, com tanto que ele não cometesse nenhuma loucura como, por exemplo, abandonar o emprego.
Alberto durante meses a fio não faltou a nenhuma reunião do PSE, por isso logo passaria a conhecer praticamente todos os elementos da alta cúpula do partido. Mais ou menos no meio do ano, quando o país se via em meio a uma das maiores crises políticas nacionais, onde escândalos e mais escândalos envolviam deputados, ministros e parlamentares de vários partidos, pondo em risco inclusive o mandato do presidente da República, o professor se lançaria de vez na carreira política.
Os escândalos que rondavam o país e vinham à tona em uma sequencia interminável e incontestável mancharam o partido do presidente da República e diversos partidos coligados a ele, porém o PSE que era um partido ainda pequeno e que por isso nada obteve de benefício com a corrupção que assolou o país passou a ser visto com bons olhos pela população brasileira. As reuniões partidárias passaram a ser cada vez mais frequentes, às vezes fazia-se até cinco reuniões por semana, e o professor Alberto participava de todas elas cada vez mais interessado pelos assuntos que rondavam a cena política nacional. Foi quando em uma destas reuniões discursava um prefeito do PSE que havia sido eleito para administrar uma grande cidade do Estado de São Paulo que ficava próxima da capital:
... e assim, meus amigos, é certo que chegou a nossa vez. Todos os partidos do primeiro escalão já foram testados e desaprovados pela população que já não vê esperança na política brasileira, restaram apenas os partidos tidos como sendo de segundo escalão onde nós estamos localizados, a esquerda brasileira mostrou-se tão igual à direita que misturou-se todo o discurso, não sabemos mais quem é quem, o presidente não consegue explicar tanta corrupção ocorrendo embaixo do seu nariz, a situação política em Brasília está em polvorosa, mas nós do PSE precisamos ter sangue frio e muita cautela para tirarmos proveito disso tudo, estamos crescendo e cresceremos mais daqui pra frente, não há nenhum político nosso envolvido nestes escândalos que espantam e revoltam a Nação, vamos às ruas contar a nossa história, vamos às praças dizer o que achamos disso tudo e, certamente, veremos que o resultado será a nossa vitória cada vez mais maciça nas urnas. Na minha prefeitura há três cargos muito bons à disposição para serem preenchidos por companheiros deste nosso partido, estou em conversação com os nossos líderes e há possibilidade de que eu saia desta reunião já com os nomes dos companheiros que trabalharão comigo na minha administração. Gostaria de parabenizar o presidente do PSE e todos os companheiros que de certa forma concorreram para que eu pudesse ser eleito. Muito obrigado, gente!
Quando o prefeito Tomazzetti encerrou o seu discurso e a reunião praticamente tinha se encerrado, Mário foi ao encontro de Alberto que estava sentado na segunda fileira de cadeiras tomando nota de alguns detalhes da reunião:
–– Boa noite, cunhado!
–– Boa noite!
–– Alberto, você está preparado mesmo para ingressar na política?
–– É claro, Mário. O que é que você acha que eu estou fazendo aqui?
–– Então, meu velho, saiba que eu consegui pra você um cargo de sub-secretário da cultura na cidade do prefeito Tomazzetti, esse aí que acabou de falar agora.
–– Não brinca, Mário.
–– É verdade, cara. Topas?
–– Estou dentro. Mas, Mário, que mal lhe pergunte, o que faz um sub-secretário da cultura na prefeitura de uma cidade?
–– Cara, os sub-secretários da cultura nas prefeituras de outras cidades eu não sei se fazem alguma coisa, não sei nem se existem, mas no caso da prefeitura do Tomazzetti o sub-secretário da cultura não fará nada que não seja receber uma boa grana. Sentiu? Não precisa se preocupar, cara! A política é assim, quem tem o poder manda. Você não está cansado de ver economista sendo ministro da saúde e médico sendo ministro da economia? O que um médico sabe sobre economia e o que um economista sabe sobre saúde? Nada, cara. Precisam apenas ter o poder para mandar os profissionais competentes fazerem o serviço. 
–– E quanto eu vou ganhar?
–– Eu presumo que no mínimo três vezes mais do que você ganha dando aulas. Tem o salário fixo que a prefeitura paga, esse é uma miséria, o bom mesmo é o que vem por fora. E então, é pegar ou largar.
–– Quando começo?
Quem não gostou nadinha desta história de ver o marido largar as salas de aula para ingressar na carreira política foi Mirtes, ela não se sentia segura sabendo que em meio a uma crise financeira que durava anos o marido se veria longe dos vencimentos minguados, porém garantidos mês a mês, que recebia:
–– Alberto, você ficou maluco?
–– Mirtes, eu estou sendo sincero com você, eu não quero mais dar aulas e estou a ponto de explodir dentro da sala de aula, não suporto mais aquele monte de alunos me enchendo o saco o dia inteiro: ‘Professor... professor’, tenho vontade de mandá-los às favas, eu juro. Agora que tenho uma única chance na vida de partir para uma coisa melhor eu gostaria que você me entendesse, até porque essa decisão é irreversível, não voltarei a dar aulas, tenho certeza disso, mas para a sua segurança eu pedi uma licença por algum tempo da escola, muito embora eu ratifique o que disse, Mirtes: minha decisão é irreversível. Não pretendo mais dar aulas na minha vida, não tenho mais interesse, acabou, chega!
–– E quanto é que vão pagar pra você?
–– Parece que algo em torno de cinco mil reais.
–– Quanto?
–– Cinco mil reais.
Mirtes não acreditou no que estava ouvindo, aquele valor que o marido estava lhe informando, cinco mil reais, dando aulas ele levava mais de três meses de trabalho para conseguir. A mulher ficou mais calma, mas, ainda assim, um calafrio rondou-lhe o estômago, tudo em Alberto havia mudado, há pouco tempo parecia que nem um milhão de reais conseguiria tirá-lo das salas de aula. Mirtes achou estranho tudo aquilo, mas a necessidade do dinheiro fez com que ela consentisse com a vontade do marido, além de que o professor não havia pedido exoneração do emprego, pediu simplesmente uma licença e muito embora ele dissesse a ela que era uma decisão irreversível, Mirtes ainda achava que Alberto era um homem flexível e sensato que sabia voltar atrás quando estivesse errado.
–– Será que eles vão pagar tudo isso mesmo pra você, Alberto?
–– Pode acreditar, Mirtes. Eles vão. Só pra você ter certeza o Mário, seu cunhado, já me deu dez mil reais hoje, disse que era uma pequena contribuiçãozinha do PSE para que eu comprasse roupas sociais novas, eles querem que eu use sempre terno e gravata, e enquanto eles não me arrumam um carro, algo que será providenciado na semana que vem, insistem que eu vá trabalhar de táxi. Vou à secretaria apenas duas vezes por semana, o resto do tempo disponível estarei preparando as reuniões do partido. Está aqui o dinheiro, Mirtes, olha só.
Alberto arrancou dos bolsos da calça dois volumosos maços de notas de cem e de cinquenta reais e colocou-os sobre a mesa. Mirtes ao ver todas aquelas notas reunidas ficou estática, sem mesmo ter o que falar, os seus olhos brilhavam, certamente que aquele dinheiro não pagaria nem um quarto das contas e empréstimos que tinham, mas, desde que ela havia se casado com o professor, nunca tinha visto tanto dinheiro de uma só vez na sua vida entrar em sua casa, só no banco onde ela trabalhou havia visto tantas notas. Alberto olhou para a esposa como se aquele dinheiro quase não fosse nada e disse:
–– Mirtes, pode ficar com estes oito mil reais –– separou o dinheiro e deu-lho à mulher –– porque para mim apenas dois mil reais dá e sobra para começar, conheço algumas lojas no centro que vendem conjuntos completos de ternos e camisas por até cento e cinquenta reais. Gaste o resto com as crianças, compre o que quiser, divirta-se Mirtes, o nosso tempo de miséria acabou, vem muito mais dinheiro por aí, esteja certa disso, comecei a chegar onde queria e tenho certeza de que daqui a algum tempo alcançarei o topo da montanha.


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12 - À Assembléia Legislativa

Foram necessários apenas poucos meses para que a situação econômico-financeira da família de Alberto mudasse completamente, não passavam mais privações por falta de dinheiro, todas as contas que tinham foram saldadas, até as prestações futuras da casa em que moravam foram quitadas antecipadamente, puderam comprar inclusive um carro novo e contratar uma emprega para auxiliar Mirtes nos afazeres domésticos. Alberto, nas poucas vezes em que estava em casa, não mais se dispunha a lavar ou guardar um copo sequer. A família Monteiro via o tempo transcorrer sem as sofríveis crises de fim de mês –– quando o mês ainda não terminou e já não há mais um centavo para se pagar as contas que faltam ––, sobrava agora bastante dinheiro no banco. Apesar de findado o sufoco que a falta de recursos impôs à família Monteiro, todo esse progresso financeiro e as mudanças repentinas que vinham ocorrendo ainda eram vagarosamente assimilados por Mirtes e os filhos.
As crianças estavam felizes, muito embora sentissem que o pai havia se distanciado bastante delas, Alberto quase não conversava ou brincava com Raphael, Lívia e Betinho como fazia antes, muitas vezes os filhos estranhavam o mau humor constante e a impaciência do pai, Mirtes dizia a eles que isso estava acontecendo porque Alberto estava sempre cansado devido ao excesso de trabalho e suas atividades políticas, o que de certa forma não deixava também de ser verdade, pois o homem se ocupava em período integral entre as poucas horas na secretaria da cultura e todas as outras horas que lhe sobravam na sede paulista do PSE. Mirtes, que claramente sofria calada para não afetar ou preocupar os filhos, sentia que Alberto quase não tinha tempo para ela também. Seria aquele o preço que tinha que ser pago por uma vida melhor? Seria aquilo tudo necessário? Tudo bem que as coisas andavam muito melhores, financeiramente falando, mas por que diabos Alberto havia mudado tanto? –– questionava-se Mirtes, frustrada pela falta de respostas –– ele parecia sentir prazer única e exclusivamente nos afazeres políticos do PSE, dava a impressão de que os filhos e ela haviam perdido a importância que tinham em sua vida. Alberto chegava em casa, quando não almoçava ou jantava fora, e fazia a refeição em poucos minutos saindo logo em seguida às pressas: –– “Não posso me atrasar para a reunião, Mirtes, tchauzinho!”–– Mirtes não encontrava resposta para nenhum de seus questionamentos, pois se estava mais tranquila e segura em relação ao futuro dos filhos –– agora que o dinheiro sobrava podia sonhar com todos eles formados, casados e felizes, assim como toda mãe deseja ––, não conseguia assimilar a radical mudança de comportamento no marido. Alberto parecia-lhe uma pessoa fria e distante e isso a assombrava demais.
Um dos acontecimentos mais horríveis e estranhos que ela havia presenciado no novo comportamento do marido, deu-se em uma recente oportunidade, coisa de uns dois meses atrás, eles sairiam para um jantar que Alberto havia marcado com um casal de políticos do PSE, um jantar de negócios no qual ela certamente se veria isolada diante de assuntos e comentários políticos, campo que, aliás, detestava, participaria apenas para acompanhar o marido, coisas de casal. Pois bem, quando estavam a caminho do restaurante, passando por uma avenida rápida e de trânsito intenso, embora naquele dia e horário o tráfego estivesse tranquilo, um cachorro escapou correndo de um terreno sem muro que ficava na beira da avenida, atravessou duas pistas, vindo a colidir-se com o veículo que Alberto dirigia. Mirtes viu que o marido imediatamente freou o carro, mas o cachorro, pobrezinho, continuou uivando e gemendo, provavelmente muito machucado, embaixo do veículo. Alberto até então não havia tido culpa alguma no episódio, o cachorro é que havia se atirado na frente do carro. Um motorista que passava pelo local parou na pista ao lado, abriu a janela e gritou para Alberto: –– “Dá ré! Dá ré, que o cachorro sai! Dá ré, que ele está na frente do carro! Dá ré!” –– Mirtes que estava apavorada com o atropelamento do pobre animal, assombrar-se-ia mais ainda com o que estava por acontecer. Na sequencia, Alberto friamente engatou a primeira marcha e disse a ela: –– “Ah, é assim, então tá bom!” –– e acelerou o carro, arrancando com toda a velocidade para a frente, num ato de selvageria e frivolidade que ela jamais havia presenciado em qualquer ser humano em toda a sua vida. O cachorro não teve nem tempo de completar o último e agonizante uivo de dor. Alberto deu uma gargalhada e em meio aos protestos e choros de Mirtes, disse:
–– Quem mandou este animal estúpido entrar no meu caminho e, ainda por cima, aquele babaca vir me dizer o que tenho que fazer?
–– Alberto, você está maluco? Aquele motorista apenas quis ajudar o cachorro a escapar da morte –– disse Mirtes aos prantos.
–– Agora já foi! Agora já foi! Aquele cara me dando ordens me deixou louco! Quem é que ele pensa que é? Eu não gostei de vê-lo gritando pra mim! Aquilo me tirou do sério, Mirtes!
–– Não me dirija mais a palavra, não quero ouvi-lo mais por hoje, entendeu? Estou traumatizada com o que vi.
Mirtes demorou para acreditar no que havia presenciado, teve vontade de descer do carro e abandonar Alberto ali mesmo. Ela tremia dos pés à cabeça de nervosismo. Alberto, percebendo a grande mancada, pediu desculpas a ela da boca pra fora dizendo que, infelizmente, havia perdido o controle emocional, prometeu também que nunca mais agiria daquela maneira irracional. Trouxe Mirtes de volta para casa, já que ela não tinha condição alguma de acompanhá-lo naquele jantar, cancelou o encontro alegando um imprevisto e prometeu à esposa que retornaria ao local em que havia atropelado o cachorro. Para Mirtes, nada que ele fizesse agora adiantaria, nada traria aquele pobre cão à vida, o mal já estava feito. Daquele dia em diante ela nunca mais confiaria no comportamento de Alberto, a mulher passou a desconfiar de tudo o que o marido fazia, ou pior, de tudo o que ele poderia fazer. Nunca havia visto tanta maldade em um ser humano, passou a ter até medo de sair com o marido. Aquela cena do pobre cachorro atravessando a avenida correndo e colidindo-se com o carro nunca mais sairia de sua mente, mas o pior era lembrar-se do ato de estupidez sádica que o marido havia proporcionado sem o mínimo escrúpulo. Mirtes sofreu por três semanas calada, sustentando-se à base de calmantes, atormentada pelas lembranças do que havia presenciado. “O que será que está acontecendo com esse homem? Será que Alberto perdeu o juízo? Por que será que ele está agindo desta forma estranha e desumana? Eu ainda acho que o acidente que ele sofreu afetou-lhe o cérebro, mas por que então os exames que ele fez não acusaram nada?”, as perguntas se multiplicariam na cabeça, cada vez mais confusa, de Mirtes sem que se encontrasse uma única resposta para elas.

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Alberto era assíduo e pontual no trabalho, levava a sério a vida política, se nada lhe cabia fazer na função de sub-secretário da cultura que não fosse ganhar dinheiro dos cofres públicos e do partido, para compensar, na sede paulista do PSE praticamente chefiava, organizava e administrava as reuniões do partido. Selecionava e respondia também as correspondências com reivindicações e pedidos que ali chegavam, recebia populares, militantes e políticos que se apresentavam diariamente no local, além disso, participava de todas as reuniões e decisões que ocorriam dentro do partido em São Paulo. Sentia que a cada dia que se passava ele se tornava mais imprescindível para o partido, algo que havia calculado e planejado friamente desde a primeira reunião da qual havia participado. Ele previa uma escalda rápida dentro da legenda, só não sabia que seria tão fácil quanto estava sendo. Alberto já sonhava em alçar voos maiores dentro da carreira política, devido aos seus contatos dentro do partido, vários eram os convites que ele recebia para se candidatar. Depois de uma conversa com o Doutor Tavares, decidira se lançar candidato a uma vaga de deputado estadual pelo PSE nas eleições de 2006. Alberto comunicou ao cunhado, mestre e conselheiro político Mário, na primeira oportunidade que teve, a conversa que tivera com o presidente do partido e seu desejo de alcançar uma vaga na Assembléia Legislativa Estadual:
–– Mário, estou pensando seriamente em concorrer a uma vaga para deputado estadual pelo PSE nas eleições do ano que vem, eu já tenho o aval do Doutor Tavares. O que você acha?
–– Eu acho ótimo, cara! Você sabia que eu quase ganhei para deputado nas eleições de 2002? Só penso o seguinte, se você quiser realmente ganhar a eleição deve começar a sua campanha logo, já estamos nos aproximando do fim deste ano e quase nenhum eleitor conhece o seu nome, e ser conhecido e lembrado são fatores determinantes em qualquer eleição, sendo assim, você deve se inscrever rapidamente à vaga e trabalhar bastante pelo seu objetivo. Agora, se você estiver apenas querendo ganhar nome e experiência para futuras eleições poderá começar mais devagar, muito embora, seja lá o que você pretende com esta candidatura, eu me disponho a ajudá-lo. Você para mim é a principal revelação política destes últimos anos, Alberto. Eu tenho certeza de que você ainda vai longe, cara!
–– Mário, eu quero realmente ganhar para deputado estadual, eu não gosto de disputar nada para perder. Eu só saio candidato se houver chances de vitória. Você acha que eu tenho alguma chance? Se você disser que não, logicamente eu não entrarei nessa disputa. Fico onde estou.
–– Cara, tudo depende. O candidato a deputado precisa ser bastante conhecido e você tem um referencial bom apenas entre alguns professores e alunos, mas já é alguma coisa. O principal é que o candidato precisa aparecer bastante, algo que posso conseguir para você com o trabalho publicitário do Chiquinho Sollo. É necessário que um candidato a deputado estadual consiga a maior quantidade de votos possíveis, por isso ele deve ir às ruas abraçar o povo, tomar nota de todas as reivindicações e pedidos, andar pelo Estado inteiro, ir à roça pisando nas estradas de barro e exibindo um sorriso de orelha a orelha mesmo que lhe entre uma pedra no sapato, entendeu? Já aconteceu isso com um político famoso, você sabia? Eu vou conseguir uma verba gorda do caixa do PSE para custear suas viagens e despesas com a campanha. Lembre-se de que um candidato precisa dar ao povo alguma esperança de que algo vai mudar, mesmo que no fundo ele saiba que não vai mudar coisa nenhuma. O povo, meu caro Alberto, adora ser enganado. Se você seguir o que estou dizendo, conseguirá ganhar a confiança do eleitorado e terá todas as chances de ser eleito.
–– E você não pensa em se candidatar, Mário?
–– Meu querido cunhado, eu estou contente trabalhando por trás deste partido, ganho bastante dinheiro sem fazer força e sem mostrar a cara, gosto que seja assim. Não tenho ambições de administrar nada que não seja a minha poupança e a minha casa. Ganhar bastante dinheiro com esperteza me excita. Acho que o Executivo e o Legislativo são para as pessoas que gostam de mexer com as massas, é outra situação, é outra levada. Eu gosto apenas de ganhar no mole, sem fazer força. Você gosta de comandar, de estar no controle da situação, gosta de dar ordens, Alberto?
–– É tudo o que eu quero, Mário. Eu estou com uma sede pelo poder que você nem imagina. Se eu conseguir ganhar para deputado, você pode crer que eu vou em frente. Não vou ficar parado nisso. Eu tenho vontade mesmo é de administrar. E no dia em que eu estiver administrando uma cidade ou, quem sabe, até um Estado brasileiro, não vou querer saber de dar moleza pra ninguém na minha administração, vai ser na base da mão-de-ferro mesmo, as minhas ordens terão que ser respeitadas e acatadas integralmente. Acho estes governantes muito moles, por que será que todos eles sempre querem dar uma de bonzinhos, hein Mário?
–– Alberto você pode até ser um cara duro e exigente, mas você tem que passar confiança para o povo e para os seus subordinados. Sugiro, para você que tem pretensões políticas de futuramente até administrar uma cidade, que comece devagar. Seja enérgico com demagogia, bata sem mostrar o pau, finja sempre quando o assunto for trabalho e bondade, você pode ser um tirano, mas deve fingir que trabalha e que ama o seu povo. O povão também adora um político tipo linha dura, a maioria dos políticos que estão no poder sabem disso. É importante para quem deseja administrar e manter o controle da situação que tenha como livro de cabeceira “O príncipe” de Maquiavel. Você já leu este livro?
–– Não, ainda não.
–– Tá vendo? Um livro tão importante para todos nós políticos, principalmente para os que querem governar como é o seu caso, e você nunca o leu. E Machado de Assis, você já leu?
–– Todos.
–– Não leia mais essas besteiras, Alberto! Alberto! Alberto! Não perca mais seu precioso tempo com essas bobagens, concentre-se apenas nas coisas objetivas, meu cunhado. Adquira mais experiências políticas e administrativas, e aprenda a ser um político de verdade, bem diferente desses politicozinhos que ficam aí cheios de nhem, nhem, nhem... O Brasil precisa de estadistas e comandantes de verdade. Na minha opinião, os últimos estadistas que tivemos foram o Getúlio e os generais, e veja só como isso acabou, talvez se tivessem sido um pouco mais duros nada teria acabado, leio muito sobre isto também. Acho que tem que ser ferro na boneca, mas sem a boneca perceber.
–– É, não se pode demonstrar o que se quer de verdade ao povo nem aos adversários. Mas o que eu quero mesmo, Mário, é poder bater forte, eu quero bater pra machucar, eu só não posso mostrar o bastão, não é isso? Mesmo que eu tenha que bater com o bastão enrolado numa toalha pra não deixar vergão nessa gente, né? Ah, que vontade que eu tenho de bater nesse povo, nesses políticos, em todo mundo, que ódio que eu tenho de toda essa caretice! Eu quero governar como um rolo compressor, quero todo mundo me respeitando! Nem que eu tenha que matar alguém! Que ódio, que ódio, que ódio...
–– Alberto, calma! Mantenha o controle, meu! Você está ruim demais, cara! O que é que está acontecendo com você? Pensando assim você não chega a lugar nenhum! Você precisa se controlar, meu bom. Você está mais histérico que o imperador Nero! Um político moderno precisa ser frio, não deve ficar demonstrando qualquer tipo de rancor, senão as pessoas se assustam e fogem, até eu me assustei com você agora. Se você não demonstrar bondade e tolerância não conquistará voto nenhum, ria no palco e mate quantos você quiser nos bastidores, entendeu? Para o povo você deve sempre parecer um pai.
–– Desculpe-me, Mário! É que eu acho esses políticos todos uns moloides, principalmente estes caras que administram, são uns bananas!
–– Você é que pensa, tem cada sanguinário em pele de cordeiro administrando por aí!
–– É mesmo?
–– IIIIIhhhhh! Conheço neguinho que não tem dó nem dos filhos. Existem candidatos que entregariam a mãe às feras e a mulher a estupradores por qualquer vaguinha política mixuruca. Todo mundo adora uma boquinha. E quando esses caras chegam aonde querem, eles não conhecem mais ninguém, meu! É cobra comendo cobra, tem que estar preparado para este mundo. Os caras sorriem e acenam para as câmeras de TV e máquinas fotográficas, mas quando elas estão desligadas ou longe deles, querem que o povo vá para a ‘ponte que partiu’. Entendeu, Alberto?
–– Sim, Mário, devo ser simpático ao dirigir-me à população, mas posso agir como eu quiser por trás das câmeras, máquinas fotográficas, enfim, terei também que passar uma imagem de político bonzinho.
–– Não se esqueça dos diários e das revistas semanais, se algum dia você for conceder uma entrevista a imprensa escrita, deverá medir com muito cuidado cada palavra que disser. Os jornalistas de meia pataca adoram inventar. Muito cuidado!
–– É, vida de político não é fácil, a imprensa escrita também pega no pé assim?
–– Xiiiii... se pegam! Essa gente da imprensa escrita é fogo na roupa! Além dos caras ficarem urubuzando tudo o que você fala ou faz, ainda pensam que são detetives com essa onda besta de investigação, são gravadores e câmeras escondidas de tudo que é lado. Você não viu o que aconteceu recentemente com o presidente e com o partido dele, Alberto? Por coisinhas bestas e pequenas a imprensa acaba com tudo. Precisavam mesmo era dar um jeito nessa gente, bem faz o Fidel!
–– Mário, eu fico mais uma vez agradecido pelas sábias palavras ditas e pela experiência política que você me transmite, ainda bem que tenho ao meu lado um homem com toda essa vivência política. Vou me lembrar sempre de cada palavra que você disse. Acho que vou começar a campanha já, você pode mesmo me ajudar?
–– É claro que sim. É só você se inscrever que começará a chegar o dinheiro para a campanha. Amanhã mesmo vou conversar com o Chiquinho Sollo. Firmeza?
–– Firmeza.
Alberto iniciou sua campanha à Assembléia Legislativa de São Paulo timidamente. Com o passar dos meses, ele foi tomando gosto pela conquista de votos, conheceu praticamente todas as maiores e médias cidades do interior do Estado, em se falando de números populacionais –– o que interessava era a quantidade de eleitores ––, fez incontáveis discursos e promessas, puxou enxada, comeu pastéis e tomou cafezinhos nos infindáveis botecos espalhados pelas esquinas paulistas, deu tapinhas nas costas de muita gente e beijinhos em crianças, foi a escolas, conversou com professores e alunos, tudo isso sob a supervisão de Mário e o trabalho de divulgação do mestre do marketing político Chiquinho Sollo. Foi praticamente um ano inteiro de uma luta política que parecia interminável. E como disse Deus: ‘do suor do teu trabalho comerás o teu pão’, todo esse esforço e trabalho deu resultado, passadas as eleições de 2006, Alberto Monteiro sairia das urnas como um dos candidatos eleitos à vaga de deputado estadual que tiveram mais votos no Estado de São Paulo. No caso dele e do PSE isso significava dinheiro, prestígio e poder garantidos.

* * * * * * *

13 - Retrato de família

–– Doutor Alberto, pelo amor de Deus, não faça uma coisa dessas! Eu tenho dois filhos pequenos pra criar e o meu marido está desempregado, doutor! Eu preciso demais deste meu emprego! Não faça uma coisa dessas comigo, doutor Alberto, pelo amor de Nossa Senhora! Eu lhe imploro! –– suplicava a empregada doméstica, dona Selma, ao homem sem coração.
–– Cala a boca, cobra peçonhenta! Eu já falei que a senhora está despedida! Arruma a trouxa e some da minha frente, rápido! Rápido!
–– Mas doutor Alberto me perdoe! O senhor pode descontar do meu salário o vaso que eu quebrei do seu escritório! Foi um acidente, doutor! Pelo amor de Deus! Não foi por querer, não!
–– Para de rastejar feito um verme, mulher! Se eu for descontar deste seu salário de miséria o preço desta relíquia, a senhora terá que trabalhar uns três meses de graça nesta casa!
–– Eu aceito, doutor Alberto! Só não posso perder esse emprego e...
Mirtes, que ouviu do andar superior da casa o barulho que vinha do escritório de Alberto, desceu rapidamente as escadas e interveio na confusão causada por mais um dos chiliques do marido com os empregados:
–– O que está havendo aqui, Alberto?
–– Essa lacraia abominável quebrou aquele vaso, Mirtes! –– Alberto apontou para os cacos do vaso que estavam sendo recolhidos por dona Selma aos prantos no chão do escritório. –– Nem trabalhar em paz nesta casa eu posso mais, Mirtes! Está vendo como esses empregados ordinários que você contrata são incompetentes?
–– Dona Mirtes, pelo amor de Deus! –– suplicava a empregada, tremendo com os cacos do vaso nas mãos. –– Eu não tive culpa, foi um acidente, eu só estava limpando, esbarrei no vaso e ele caiu, mas eu vou pagar tudo...
–– Acalme-se, dona Selma. Eu sei que a senhora não fez por querer. Este vaso é baratinho, depois comprarei outro. Não se preocupe. Deixe os cacos para depois, a senhora pode ir cuidar dos outros afazeres da casa, sim?
–– Sim, senhora! Com licença!
Alberto, com os olhos transbordando raiva e ódio, fitou Mirtes, balançou várias vezes a cabeça num gesto que claramente desaprovava a atitude da esposa e começou o enredo sem papas na língua:
–– Por que você está bancando a protetora destes serviçais incompetentes, hein Mirtes?
–– Desde que nos mudamos para esta casa, todas as pessoas que trabalham nela são selecionadas cuidadosamente por mim e, apesar de serem serviçais, como você diz, são seres humanos merecedores de respeito como qualquer outra pessoa, Alberto. Além disso, todos estão sob os meus cuidados sim.
–– Essa empregada vagabunda, cretina e descuidada está despedida, Mirtes! Eu não quero nem saber!
–– Não, ela não está! Enquanto eu também mandar aqui nesta casa, ela não será despedida por um simples acidente ocasional, Alberto! E meça as palavras quando falar dos outros, tenha mais respeito pelas pessoas!
–– Ah, é! Então, pague você o salário dela!
Alberto virou-se de costas para a esposa, retirou-se do escritório indignado, batendo a porta com toda a força de que dispunha, foi à garagem, pegou o carro e saiu de casa sem dar satisfação alguma do rumo que seguiria. Mirtes permaneceu no escritório sem compreender o porquê de uma atitude tão extremada do marido, decorrente apenas pela quebra de um vaso ordinário. Olhou para os cacos no chão e um filete de lágrima já lhe percorria o rosto. O escritório impecavelmente decorado, a mobília de madeira nobre destacava-se aos olhos de quem o vislumbrasse, tudo muito limpo, tudo muito organizado, não havia motivos para outro destempero do homem sem coração, nenhuma razão sequer plausível. Alberto parecia aguardar um simples deslize para humilhar e torturar psicologicamente os empregados e até as pessoas estimadas por Mirtes.
Ainda sob forte emoção, Mirtes caminhou até a sala de visitas daquela enorme casa recém-adquirida, pelas janelas contemplou a beleza do jardim cuidadosamente aparado e se lembrou do jardineiro que havia sido demitido por Alberto dois dias atrás, após mais uma discussão por motivo banal. Aquele casarão poderia ser um sonho de consumo para muitos, mas para ela parecia uma prisão na qual cumpria pena por um crime que não cometeu. A casa fora adquirida pelo marido no final do ano passado, 2007. Alberto Monteiro era um deputado estadual muito conhecido, um político em ascensão, era candidato a prefeito de São Paulo pelo PSE nas eleições que ocorreriam no final do ano corrente, 2008. Porém, aquela casa não vinha oferecendo a ela e aos filhos nenhum motivo de felicidade, muito pelo contrário, aquela mansão, adquirida pelo marido por uma quantia de dinheiro inimaginável e de procedência duvidosa, agravou ainda mais a situação emocional da família, o homem, depois que havia se mudado para aquele local, parecia um tirano igual aos das biografias que ele andava lendo: Ivan - o terrível, Hitler, Stálin, e outros da mesma linhagem, ele não estava poupando nem ela nem os filhos de sua selvageria gratuita. Ainda olhando pelas janelas da sala de visitas o belo jardim do quintal, viu muitas flores, muitas árvores, muitos pássaros, a vida lá fora parecia-lhe bonita, harmônica, poética e, então, por qual motivo aquele deslumbrante casarão, quando o marido estava presente, tinha que se transformar no inferno? A cada dia o homem estava mais diabólico. Implicava com os empregados e com os filhos, maltratava as pessoas conhecidas e desconhecidas, enfim, não fazia questão de demonstrar o mínimo de educação e de bons costumes com ninguém. Às vezes, quando Alberto se preparava para sair, ela perguntava aonde ele ia e, em seguida, ouvia sempre a mesma resposta grosseira: “Aonde eu vou não interessa a ninguém, Mirtes!”. Apenas naquela semana, ele havia maltratado, além de dona Selma e o jardineiro, duas amigas antigas dela que lhe fizeram uma visita. Mirtes não teve nem como se desculpar às amigas de tanta vergonha que sentiu dos disparates do marido. Confundia bastante a cabeça de Mirtes deparar-se com situação tão paradoxal, o povo nas ruas aplaudia o político Alberto Monteiro, candidato à Prefeitura de São Paulo, enquanto isso, dentro de casa o mesmo homem parecia um demônio.
Mirtes decidiu que naquele dia teria uma conversa séria e definitiva com o marido. Ele havia passado dos limites. Ou ele mudava suas atitudes recentes com ela, com as pessoas que lhe rodeavam naquela casa e, principalmente, com os filhos, ou não haveria mais possibilidades de convivência conjugal entre eles dois. Mesmo diante desta drástica decisão, ela nutria esperanças de que o respeito, o carinho e a dedicação que Alberto tinha por ela voltassem. Ultimamente, ela sentia que não passava de um mero objeto sexual para o marido. Era só sexo, sexo e mais sexo. Alberto a possuía como se consumisse uma laranja que se chupa para depois jogar o bagaço fora. Não era assim que ela queria.
Mirtes passou a noite acordada esperando pelo marido. Por volta das três horas da madrugada, ele chegou. Acendeu a luz da sala e se deparou com ela em pé à sua frente:
–– Ué, você ainda está acordada, Mirtes? –– falou como se não se lembrasse de nada do que havia feito naquela tarde.
–– Eu estava esperando você chegar, Alberto. Não vou conseguir dormir sem antes ter uma conversa séria com você!
–– Ê ê ê ê ê... Se for conversar sobre assuntos de empregados a essa hora da madrugada, não vai dar. Tudo bem? –– foi se aproximando de Mirtes tentando agarrá-la ali mesmo, a mulher se esquivou.
–– Tira estas mãos de mim, Alberto! Chega! Nada está bem por aqui! O assunto que está em pauta é este seu comportamento doentio e destemperado.
–– Eu não sou adolescente para querer saber nada sobre comportamento, Mirtes! O meu jeito é este e acabou! Está bem? –– dito isto, virou-se de costas e foi se retirando.
–– Ei! –– bradou alto a mulher severamente –– Aonde é que o senhor pensa que vai, hein? Não vai fugindo, não! Você vai ter que me ouvir, nem que seja na marra!
Alberto voltou-se à mulher com um sorriso irônico, parecia até gostar da atitude enérgica e mesmo nervosa com que Mirtes lhe dirigia as palavras, sentou-se no sofá e disse à esposa:
–– Então, pode falar. Sou todo ouvidos.
–– Alberto, –– continuou Mirtes um pouco ofegante, porém mais controlada –– passaram-se mais de três anos desde que você sofreu aquele maldito acidente, já estamos em 2008 e você agora é um homem importante e abastado, é candidato a prefeito desta cidade, poderá inclusive ganhar a eleição, mas a cada dia que se passa você está ficando mais perverso e intolerante com todas as pessoas que o cercam. Por que isso, Alberto? Por quê?
–– Você está me achando perverso e intolerante?
–– É evidente. Você viu como você foi capaz de tratar aquela pobre empregada esta tarde? Você se lembra de todas as atrocidades que vem praticando ultimamente aqui nesta casa? Será que se lembra? E daquele cachorro que você matou desnecessariamente, você se lembra?
–– Ih! Já vem você de novo com esta história de cachorro e querendo defender estes serviçais cretinos e incompetentes.
–– Não, você está enganado, Alberto. Eu não estou em defesa de nenhum serviçal. O que estou tentando fazer é defender o que ainda resta do nosso relacionamento. Há três anos que não tenho paz, você nunca mais foi o homem que eu aprendi a amar, a admirar. Você só quer saciar seu apetite sexual e pronto. Não me dá mais carinho e nem dos seus filhos você se lembra mais. Eu acho que esta história de política mudou você demais, homem! E, infelizmente, você mudou para pior, você anda doente e obcecado com esta história.
–– Como posso ouvir isso? Como posso concordar com bobagens como estas? Vocês têm tudo o que querem nas mãos, tudo fruto do meu trabalho e suor, e ainda reclamam? Vocês queriam que eu continuasse sendo aquele professorzinho assalariado que eu era antes? Queriam?
–– Sim, tenho certeza de que queríamos. Ou você acha que este casarão, este dinheiro que não se sabe de onde vem e toda esta ostentação é tudo na vida, Alberto? Onde está a alegria que tínhamos? Onde está a paz que tínhamos? Onde está o amor que você tinha pela nossa família? Pelos nossos filhos? Você ainda me ama, Alberto?
–– Mirtes, eu vou ser bem franco, faz algum tempo que eu me sinto muito estranho, eu não sei se amo nem a mim mesmo, quanto mais aos outros. Mas eu me sinto bem assim, me sinto livre, nada mais me amarra, entende?
–– Não, eu não entendo. Então, quer dizer que você não me ama mais?
–– Mirtes, eu não amo mais você, nem ninguém. Sinto que este sentimento está longe do meu alcance.
–– Há outra mulher em sua vida, Alberto?
–– Não, Mirtes. Você é e sempre foi a única mulher em minha vida.
–– Você não vai mudar este seu comportamento e nem me amar mais para manter a nossa relação?
–– Eu não tenho por que mudar nada. Agora sou um político de sucesso, aclamado pelas multidões. Sou candidato a prefeito, estou empatado em segundo lugar nas pesquisas de opinião e tenho certeza de que, depois dos primeiros debates, assumirei a dianteira da disputa. Mirtes, eu, Alberto Monteiro, seu marido, serei o prefeito de São Paulo, você será a primeira dama desta cidade, entendeu? Eu não serei nunca mais um simples professor, a vida é assim. Gosto que seja assim.
–– Se os eleitores conhecessem as suas atitudes e o conhecessem de verdade...
–– Quem conhece quem de verdade, Mirtes? Nem a gente mesmo se conhece. O povo conhece o político Alberto Monteiro, o deputado estadual que clama por educação e progresso para a população e isso basta, o cidadão Alberto não interessa a ninguém.
–– A mim interessa.
–– Eu não vou mudar em nada, Mirtes. Eu não quero mudar. Mudar para mim seria o mesmo que morrer. Eu consegui sucesso assim e tenho que continuar assim.
–– Então, é definitivo, Alberto?
–– É.
–– Alberto, então eu fico por aqui mesmo, deste jeito eu não quero seguir em frente com você. Providencie um advogado para tratar das nossas papeladas.
–– Se você deseja assim...
–– Quem desejou assim foi você e não eu.
–– Vou arrumar as minhas malas, Mirtes. Quando o dia amanhecer eu vou embora. O advogado vai acertar tudo, não vou deixar você nem as crianças ao relento. Mas eu também acho que entre a gente não dá mais.
Mirtes viu Alberto subir as escadas em direção ao quarto como se nada o tivesse abalado. Ela, no entanto, estava destruída por dentro. Havia algo misterioso naquele homem que o blindava de qualquer sentimento de bondade inerente aos corações humanos. Viu quando Alberto entrou no quarto, fechou a porta e apagou a luz, enquanto isso, sentiu que lágrimas fluíam abundantemente de seus olhos e escorriam pelo seu rosto de feição triste e perplexa por não esperar que um amor de muitos anos chegasse de maneira tão complicada ao fim. Não era exatamente o que ela queria, mas não poderia ser de outra forma, o marido parecia já esperar por isso. Mirtes adormeceu ali mesmo no sofá e, ao acordar, notou que Alberto, agora em sua vida, era apenas uma lembrança saudosa de tempos felizes, eternizada em um retrato ao lado dela e dos filhos sobre o aparador da sala de visitas.

* * * * * * *

14 - Ascensão política

Alberto vendeu o casarão e comprou dois apartamentos, um para Mirtes e os filhos, no Ipiranga, bairro exigido e preferido por ela, e outro para ele em Higienópolis, um dos bairros mais charmosos de São Paulo. Alberto cuidou ainda de acertar judicialmente o valor da pensão e não criou nenhum empecilho no que dizia respeito à guarda dos filhos, pois as intensas e agitadas atividades políticas vividas por ele, principalmente na condição de candidato à Prefeitura de São Paulo, não lhe davam condições de se preocupar ou perder tempo com ninguém. Comprou também um carro novo para Mirtes e, fora pensão e mesada, assumiu a responsabilidade pelas despesas educacionais de Raphael, Lívia e Betinho. Dinheiro para Alberto não era problema. Os cofres lícitos e, lógica e principalmente, também os ilícitos do PSE estavam cada vez mais abarrotados de dinheiro provindo das administrações irregulares do partido nas prefeituras e governos conquistados, os políticos eleitos firmavam todos os tipos de contratos irregulares com empreiteiras e empresários corruptos, o que era muito vantajoso para o partido, admitia-se a prática de quaisquer falcatruas e trambiques possíveis e imagináveis que aparecessem pela frente. Em razão disso, tudo andava otimamente bem para os políticos da alta cúpula do partido –– Alberto estava rico, Mário riquíssimo. O doutor Tavares, presidente do partido, dizia sempre sorrindo aos seus colegas correligionários que o PSE já tinha cacife até para eleger o presidente da República.
Após os últimos acertos decorrentes da separação, Alberto pode dispor de todo o tempo do mundo para se dedicar única e exclusivamente à sua candidatura. Depois de alguns meses de trabalho, o homem sem coração sentia-se muito bem com os resultados da campanha política. Na realidade, há muito tempo Alberto já não tinha vontade de ir para casa e encontrar a mulher e os filhos de braços abertos à sua espera, faltava-lhe aquele sentimento que une afetivamente as famílias. A convivência, que vinha se arrastando entre ele, Mirtes e os filhos, estava lhe fazendo mal. Alberto não sentia mais amor pela família e não conseguia disfarçar mais nada. Por outro lado, a política e a busca incessante pelo poder supriam-lhe todas as expectativas de vida. Alberto estava tomando gosto por aquele mundo onde a mentira, o blefe e a corrupção caminhavam juntos. Faltando poucos meses para o início das eleições municipais de 2008, o candidato entregava-se completamente à corrida eleitoral. Na reunião restrita, que ocorria entre ele, Mário e Chiquinho Sollo, discutia-se a arrancada final à Prefeitura de São Paulo, esquematizava-se também como seriam as gravações dos programas de rádio e televisão do PSE. Chiquinho Sollo, o marqueteiro da campanha de Alberto e do PSE, anunciava entusiasmado:
–– É agora, quando começa a divulgação dos candidatos no rádio e na televisão, que a eleição pega fogo! Eu até aprontei um ‘slogan’ para a nossa campanha que gruda que nem chiclete!
–– E qual é o ‘slogan’, Chiquinho? –– indagou o candidato a prefeito.
–– Ouçam bem, meus amigos: “Esse é o homem que esta cidade precisa”. Que tal, gostaram? Não é lindo?
–– Está muito bom, Chiquinho! Taí, gostei! Será um prato cheio para os cartazes que espalharemos pela cidade. –– planejou Mário, imaginando o efeito daquela frase nos eleitores. ­­–– E você, Alberto, o que acha? –– indagou voltando-se à reunião.
–– Eu também gostei, mas faço uma pequena ressalva. –– Chiquinho e Mário olharam para Alberto que continuou: –– Eu gostaria que fosse corrigida a regência verbal, pois analisando a frase, nota-se claramente que a preposição, imprescindível ao verbo ‘precisar’, foi ignorada. –– concluiu a manifestação em socorro à linguagem culta e formal.
–– Como assim? A frase não está certa? –– indagou o publicitário.
–– Chiquinho é melhor que a frase fique assim: “Esse é o homem de que esta cidade precisa” ou, caso prefira, “Esse é o homem do qual esta cidade precisa”. É só acrescentarmos a preposição que a frase fica correta. –– arrematou o ex-professor.
–– Isso aí tanto faz, Alberto. O importante é a mensagem e não a regência, meu caro. –– teimou o marqueteiro que não queria dar o braço a torcer.
–– Tanto faz pra você que escreve de qualquer jeito, esse pequeno detalhe pra mim faz muita diferença. –– retrucou nervosamente Alberto já se levantando da cadeira.
Mário, tarimbado em futricas políticas e ciumeiras frequentes nas calorosas reuniões do PSE, interveio providencialmente na discussão gramatical para acalmar os ânimos exaltados:
–– Êpa! Êpa! Êpa! Que isso gente! Vamos nos acalmar! Estamos quase para ultrapassar o candidato que está em segundo lugar e o trabalho até aqui está sendo ótimo, ok? Vamos planejar os nossos passos daqui pra frente e se houver pequenos detalhes a serem dirimidos, discutiremos todos eles civilizadamente.
Alberto e Chiquinho Sollo concordaram com Mário e findaram, pelo menos por enquanto, as adversidades. O astuto Mário, satisfeito com o retorno da paz necessária ao prosseguimento da reunião, continuou:
–– O seu ‘slogan’ está ótimo, Chiquinho. No entanto, o Alberto tem razão ao se importar com a escrita correta da frase, afinal o PSE é um partido que se caracteriza pelo interesse que tem com a cultura e a educação. Agora, vamos ao que interessa. Chiquinho, por favor...
O marqueteiro levantou-se de sua cadeira e caminhou até uma mesinha onde estava uma garrafa de café, serviu-se e, voltando à reunião, iniciou a sua explanação:
–– Bem, ressalto que até aqui o que tem proporcionado está boa campanha é que o nosso candidato é um homem identificado com a causa do partido, ou seja, a educação e a cultura. Por isso, devemos dar mais ênfase ao fato de ele ter sido professor. Estou em contato com um dirigente da classe professoral, que me disse que dentro de duas semanas haverá uma paralisação de professores da rede estadual de ensino na praça da República, Alberto deverá se preparar, desde já, para tirar vantagem disso. Outro ponto importante é que nos programas de rádio e televisão nós devemos sair da mansidão e irmos para o ataque aos outros candidatos, principalmente ao candidato que está em segundo lugar, ele é o primeiro adversário a ser batido por nós, estamos praticamente empatados tecnicamente com ele, mas precisamos passá-lo para irmos ao segundo turno das eleições. Devemos também, além de enfocar a educação, nossa matéria-prima, conquistar os votos dos eleitores preocupados com a saúde, moradia e emprego. Eu já elegi até defunto político, lembram-se do Joaquim Ramalho? Eu que elegi aquele crápula, e, mesmo assim, aquele velho desgraçado morreu me devendo. Imaginem agora o que eu não sou capaz de fazer com um candidato como o Alberto, se chegarmos ao segundo turno. Alberto, você é um homem inteligente e que sabe se expressar e, ainda por cima, ninguém pode atacar você diretamente porque você ainda não administrou nada. Mas, para ganharmos esta eleição, peço aos senhores que continuem confiando plenamente no meu trabalho e, então, verão que a Prefeitura de São Paulo de 2008 está no papo.
O marqueteiro sabia do que estava falando, porque a sua influência ultrapassava o marketing político e se estendia até conhecimentos e influências em outras áreas administrativas, sindicais e públicas.
–– Você está certo, Chiquinho. Gosto da sua linha de raciocínio. Daqui a duas semanas vou à paralisação dos professores na praça da República e, no horário político, vou imediatamente pra cima do candidato que está em segundo lugar. No segundo turno a história será outra, quero assumir logo a liderança. –– com estas palavras Alberto retribuiu o elogio do experiente marqueteiro.
–– Assino embaixo de tudo o que você disse Chiquinho, esta campanha sempre esteve e continuará em suas mãos. Cuide agora da gravação dos programas de TV e rádio. –– enfatizou as palavras de Alberto, Mário.
–– Xá comigo! –– exclamou Chiquinho Sollo abrindo papéis sobre a mesa para explicar o esquema de gravação dos programas políticos.

* * * * * *

Decorridas duas semanas da reunião, Alberto, que em nova pesquisa realizada depois do início do horário eleitoral já aparecia em segundo lugar em intenções de voto, encontrava-se na Praça da República junto ao enorme contingente de professores da rede de ensino estadual, que ali estavam em paralisação por melhores salários e condições de trabalho. O candidato à Prefeitura sentiu que os ânimos estavam acirrados pela hostilidade que alguns professores expressavam quando o viam, mesmo assim, o homem estava decidido, iria subir naquele caminhão e frente ao microfone iria conquistar aquele povo: “Esse bando de professores são uns trouxas, vai ser moleza conquistar esses idiotas” –– pensava enquanto olhava para a multidão. Estava uma tarde bonita e ensolarada e fazia mais de meia hora que Alberto ouvia os pronunciamentos exaltados dos professores frente ao microfone e aguardava a sua oportunidade, foi quando o dirigente amigo de Chiquinho Sollo apossou-se do microfone e anunciou que um dos candidatos à Prefeitura, afrontando a lei eleitoral pela necessidade e urgência da ocasião, iria se pronunciar. O esquema estava armado, agora era com ele. Alberto subiu no caminhão sob uma chuva de vaias, esperou por um minuto em silêncio, apenas olhando para a multidão e, então, iniciou o discurso:
–– Podem vaiar à vontade! Podem vaiar! Estas vaias que me vêm aos ouvidos não são para mim! Estas vaias que me vêm aos ouvidos são para o quadro político nacional, por isso, podem vaiar! Eu espero vocês terminarem para que eu comece.
O homem sem coração deu um passo para trás do microfone e encarou novamente a multidão, tudo acontecia como ele esperava. Aos poucos, como se por um milagre, o barulho das vais foi se abrandando, se abrandando, até que, enfim, o silêncio, por ele esperado, se fez presente. Alberto, que parecia até ter calculado quando os professores se acalmariam, voltou ao microfone e disse:
–– Obrigado a todos! Eu sei que entre nós, professores, a educação tarda, mas não falha! Toda esta manifestação de repulsa é necessária, muito embora, volto a afirmar que as vaias não foram para mim. Afinal de contas, vocês me vaiarem é o mesmo que vaiarem a si próprios. Eu não estou aqui na condição de deputado estadual eleito em 2006 e muito menos na de candidato à Prefeitura desta cidade agora em 2008, meus amigos! Portanto, não considero que com esta manifestação, eu esteja infringindo a legislação eleitoral. Esqueçam-se de que há um político na frente de vocês, porque eu estou aqui na condição de professor da rede pública estadual de ensino! Eu sou mais um de vocês! Foram quase duas décadas da minha vida dedicadas à educação e à cultura, foram quase duas décadas da minha vida ganhando um salário igual ao que vocês ganham, sabem por quê? Sabem por quê? Porque toda essa canalhice que manda e desmanda na política nacional há décadas assim o quis. Eu sei, meus queridos amigos, o que é enfrentar a jornada de trabalho dentro das salas de aula com os dedos rachados pela cal do giz, giz que muitas vezes sai do nosso próprio salário, porque o governo não está nem aí em dar as condições mínimas para a educação pública. –– A multidão agora em silêncio prestava atenção em cada palavra pronunciada por Alberto. –– Eu sei o que é enfrentar a rebeldia de alguns alunos, mas também sei da emoção que sentimos, na condição de educadores, quando descobrimos os talentos e aptidões de tantos outros alunos. Meus amigos, a nossa carga de trabalho se estende até depois das horas que passamos nas salas de aula. Quantos de vocês corrigem provas e trabalhos nas salas de aula? Quase ninguém, não é? Não dá tempo, não é verdade? Levamos estas tarefas para as nossas casas quando, em vez disso, deveríamos levar amor e carinho para os nossos filhos, para as nossas famílias. É por estas razões que me propus, atendendo um pedido do comando organizador desta paralisação, a vir aqui conversar com vocês e de braços abertos prestar a minha solidariedade a este movimento. Digo mais, eu, em primeiro lugar na qualidade de professor, depois de deputado estadual e candidato a prefeito de São Paulo, estou me propondo a encaminhar pessoalmente ao governador do Estado a pauta de reivindicações de todos vocês em reunião marcada no Palácio do Governo depois de amanhã. O governador respeitosamente me receberá. Mas para que tenhamos um resultado bom, eu gostaria de pedir, humildemente, que todos vocês voltassem ao trabalho amanhã e aguardassem por boas notícias. Dou-lhes a minha palavra de que lutarei até o fim por todos vocês. Não estou aqui para pedir votos, estou aqui na condição de um professor exigindo respeito à nossa categoria! Muito obrigado, meus queridos irmãos!
Alberto abandonou o microfone sob uma chuva de aplausos e assobios. O homem sem coração havia de fato conquistado o respeito dos professores que estavam rendidos e hipnotizados pelo seu discurso. O movimento dividiu-se imediatamente, e todos sabem que um movimento deste porte dividido, dissolve-se. Mas, como havia prometido aos professores, dois dias depois, Alberto estava junto com o governador discutindo o movimento. O candidato a prefeito de São Paulo agindo com maestria convenceu o governador de que um reajuste salarial seria a melhor saída para o momento e conseguiu para os professores algo em torno de dez por cento de aumento nos vencimentos, não era o reajuste salarial que a categoria queria, mas pelas circunstâncias econômicas do país, era algo significativo. Surgia com força um político novo no cenário desgastado da política nacional, representando uma categoria esquecida por praticamente todos os políticos. Alberto ficou em evidência na classe professoral, que o via como uma espécie de luz no fim do túnel, e também conquistara a admiração do governador, que apesar de ser adversário político do PSE, era amigo de Chiquinho Sollo, que o havia elegido, por ter conseguido estancar o movimento grevista. Os jornais e as revistas divulgaram o fato em larga escala, além do programa político do PSE no rádio e na televisão, e a partir de então o ex-professor e candidato à Prefeitura de São Paulo, Alberto Monteiro, se tornaria um herói da política brasileira não só na cidade de São Paulo, como também no Estado e em nível nacional.
Com toda a popularidade que conseguira foi fácil para Alberto conquistar a ida ao segundo turno das eleições de 2008. O candidato do PSE havia chegado à reta final das eleições praticamente empatado em primeiro lugar, logo, como ele havia afirmado, assumiria a ponta e de lá não sairia mais. A votação final foi um massacre, Alberto derrotou o segundo colocado obtendo, na contagem final dos votos, 65% dos votos válidos contra 35% do candidato derrotado. Alberto Monteiro era o novo prefeito de São Paulo.


* * * * * * *

15 - Esse é o homem do qual esta cidade precisa

O incipiente administrador chegou com vontade de mostrar serviço na Prefeitura de São Paulo. Todos os dias, Alberto chegava ao trabalho por volta das sete horas da manhã e, quase sempre, dali só arredava o pé depois das vinte e duas horas. Era um prefeito dinâmico, exigente, ríspido e rígido, daqueles que a cidade há muito tempo não via. O homem ‘não dava boi pra ninguém’, diziam os funcionários pelos corredores da Prefeitura. Até os guardas da portaria o haviam apelidado com a alcunha de ‘perigoso’, eram comuns estas frases criadas por eles: “O ‘perigoso’ já chegou?” ou “O ‘perigoso’ saiu?”. Todo esse temor se devia ao tratamento que Alberto dispensava aos seus subordinados e funcionários, o prefeito não era nada amistoso, por vezes se tornava um verdadeiro verdugo na frente de qualquer serventia que, segundo ele, merecia uma punição exemplar. O funcionário não escapava de receber a tortura moral e psicológica onde estivesse, “se na frente dos outros colegas de trabalho, melhor ainda” –– pensava Alberto ­–– “aí todo mundo fica esperto comigo”. Muitos eram os demitidos pelo prefeito sem que houvesse motivos ou razões plausíveis. Todos estes atos do prefeito restringiam-se aos seus domínios administrativos internos, Alberto parecia sentir satisfação em humilhar e castigar as pessoas que dele estavam próximas e que dele dependiam. Mas, nas ruas Alberto era a cada dia que se passava mais querido pela população. O prefeito havia aprendido a controlar todos os seus impulsos e instintos de maldade quando lhe convinha. Para o povo, como dizia o ‘slogan’ criado por Chiquinho Sollo, Alberto era o prefeito do qual a cidade precisava. Eram frequentes as visitas surpresas do prefeito aos locais de atendimento ao público, administrados pela Prefeitura, muito mais por gosto e diversão que por trabalho, o homem sem coração adorava ver diretores, chefes, dirigentes, funcionários e subordinados implorarem por seus empregos aos seus pés. Tudo era motivo para que o prefeito esculhambasse com qualquer um a sua frente. Alberto ia conversar com o povo nos terminais de ônibus, nas escolas, nas ruas, nos hospitais, sempre acompanhado por jornalistas, fotógrafos e demais profissionais da imprensa escrita e falada, Alberto havia aprendido com Mário a tirar proveito da imprensa que, por sua vez, tirava proveito de Alberto também, as notícias do prefeito significavam vendas acima da média e lucro garantido. Ultimamente, um fato recente vinha aumentando absurdamente a sua popularidade. Fora uma visita surpresa do prefeito ao Hospital Municipal do Tatuapé. Chegando ao local da inspeção, um idoso que ali se encontrava, à espera de atendimento havia mais de duas, aproveitou-se da visita do prefeito para reclamar da interminável espera e da falta de cuidados, segundo ele, dos médicos, atendentes e enfermeiros para com um idoso doente:
–– Doutor Alberto? Doutor Alberto?
–– Pode falar, cidadão. Eu o estou ouvindo. –– disse solícito o prefeito.
–– Estou vindo de longe, venho de Guaianazes, para fazer tratamento neste hospital dia sim, dia não e, quase sempre, fico por mais de quatro horas esperando que o médico me atenda e ninguém aqui me dá nenhuma explicação. Este hospital está largado, doutor. A administração está uma porcaria. Gostaria que o senhor tomasse uma atitude, por favor.
Era a brecha que o prefeito esperava. Alberto ouvindo esse breve relato, já na presença de vários jornalistas, que chegaram rapidamente assim que souberam que o prefeito havia se dirigido àquele hospital, diante das câmeras e máquinas fotográfica em atividade, virou uma fera:
–– Chamem imediatamente o médico-diretor responsável por este hospital, se é que podemos chamar uma espelunca desta de hospital! Vamos rápido que eu não tenho tempo a perder! Rápido! Rápido! –– os berros do prefeito ecoavam pelos corredores do hospital.
O doutor Jaime Firelli, mais conhecido como dr. Firelli, desceu dos andares superiores do prédio às pressas para atender ao prefeito. O respeitado médico ao encontrar-se com o prefeito, gentilmente se apresentou:
–– Muito prazer, senhor prefeito! Doutor Firelli ao seu dispor. Em que posso ajudá-lo? –– estendeu a mão para Alberto, sem ser correspondido.
–– Em primeiro lugar, eu não vou pegar na sua mão porque acabei de espirrar com o cheiro ruim que vem dos corredores deste hospital que o senhor administra! –– mentiu o prefeito, os corredores estavam brilhando de tão limpos. — Entretanto, quero alertá-lo de que recebo aproximadamente mais de vinte reclamações por dia deste hospital e da vossa administração, e chegando aqui, para averiguação ‘in loco’ das reclamações pertinentes, recebo mais reclamações da população. O que está acontecendo, o senhor pode me explicar?
O médico sentindo-se incomodado na presença de tantos jornalistas, o saguão do hospital estava cheio, disse ao prefeito:
–– Poderíamos conversar mais à vontade na minha sala, por gentileza, senhor prefeito?
–– Por quê? Há algo que deva ser ocultado da população desta cidade, doutor?
–– Não. Não é isso. É que lá...
–– Por favor, doutor! Não me faça perder mais tempo! Eu exijo uma explicação plausível de sua parte! É preciso que o senhor me informe do que está acontecendo aqui!
O médico já tenso e não podendo escapar do constrangimento, dirigiu-se ao prefeito irritado, optando pela verdade dos fatos:
–– Prefeito, o senhor já viu a quantidade de memorandos que este hospital envia para a administração pública do vosso governo solicitando mais médicos, atendentes e enfermeiros, fora materiais médicos imprescindíveis: seringas, luvas, remédios, conserto de maquinário e tantas outras coisas, sem que a Prefeitura nos atenda?
O prefeito também se irritou com a petulância daquele médico que lhe dirigia a palavra e entendeu aquele comportamento como uma afronta:
–– O senhor ainda quer medir forças comigo, doutor? Eu vou lhe responder com outra pergunta, mas dispenso a resposta, por que só recebo reclamações deste hospital e de outros não? –– mentiu descaradamente o prefeito.
–– Eu acho que...
–– O senhor não acha nada, doutor! Quem acha alguma coisa aqui sou eu e a população!
–– Prefeito, ponho o meu cargo à disposição.
–– O seu cargo já se encontrava à disposição antes que eu me dirigisse para cá, doutor! –– ironizou o prefeito. –– É que eu queria conhecê-lo pessoalmente! O senhor está a partir de agora suspenso de suas atividades por tempo indeterminado, outro médico ocupará o cargo e veremos o resultado. O meu tempo por aqui acabou e o seu também! Será instaurada uma sindicância para apurar suas responsabilidades, doutor ‘Pirelli’! –– Alberto errou o nome do médico por querer e arrematou:
–– Eu quero que algum valoroso médico atenda este senhor que está aqui a meu lado, esperando mais de cinco horas por atendimento! Vamos, i-m-e-d-i-a-t-a-m-e-n-t-e, entenderam?
Um médico, que acompanhava o desenrolar da visita do prefeito ao hospital, chamou o cidadão à sua sala. O paciente idoso não tinha palavras para agradecer ao prefeito pelo gesto de carinho para com ele e a sofrida população de São Paulo. O prefeito estendeu a mão ao cidadão que retribuiu com um abraço, enquanto Alberto pensava: “Velho idiota! Espere que o seu dia chegará! O seu e o de toda essa população cretina! Deus, como esse povo é besta!”.
No dia seguinte os jornais estampavam nas primeiras páginas muitas notícias que divulgavam a administração dinâmica do prefeito:

“Prefeito Alberto faz visita no estilo Jânio Quadros em hospital público e afasta médico-diretor.”


“Prefeito de São Paulo exige atendimento decente em Hospital do Tatuapé.”


“Prefeito Alberto Monteiro afasta diretor-médico do Hospital Municipal do Tatuapé.”

As visitas e frequentes afastamentos de funcionários considerados incompetentes pelo prefeito não pararam por aí. Alberto afastou fiscais da prefeitura que atuavam nos terminais de ônibus e nas ruas, afastou diretores de escolas municipais, demitiu garis, professores, policiais, enfim, mexeu com toda a rotina administrativa da cidade, não com a intenção de colocar a casa em ordem, mas sim de buscar uma popularidade cada vez mais sólida, e os resultados nesse sentido eram cada vez mais evidentes.
Chegando-se ao final do primeiro ano da administração do prefeito Alberto Monteiro, o PSE ,em reunião nacional, decidiu-se pelo nome do prefeito de São Paulo como candidato do partido ao governo do Estado já nas eleições de 2010. O motivo: Alberto Monteiro aparecia em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto para o cargo de governador do Estado de São Paulo. Os eleitores da capital e do interior queriam-no como governador do Estado e o PSE não poderia de forma alguma deixar escapar esta oportunidade.

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16 - Promessas não passam de promessas

“... Então, meus queridos amigos e minhas queridas amigas, foi com imensa satisfação que administrei esta cidade por um ano e meio, conheci os problemas de São Paulo de perto e da melhor maneira procurei saná-los. Hoje, se estou sendo apontado como o primeiro colocado nas pesquisas para ocupar o cargo de governador do nosso Estado, inclusive aqui na própria Capital paulista, é porque nós administramos muito bem, neste curto espaço de tempo, a nossa cidade. Digo nós, não me valendo de simples plural de modéstia, mas sim porque fui às ruas e vi como você, meu querido povo paulistano, constrói e engrandece esta cidade. Peço desculpas aos que se sentiram prejudicados de alguma forma pelo dinamismo da minha administração, mas uma administração que paute pela seriedade e pelo trabalho honesto deve encarar as dificuldades de frente e jamais fugir da luta. Gostaria, por fim, de lembrá-los de que só vou à corrida pelo Palácio dos Bandeirantes porque sei que a nossa cidade continuará em boas mãos, o vice-prefeito de São Paulo assumiu comigo o compromisso de dar continuidade ao trabalho que vínhamos fazendo, e sei também que se eu atingir o objetivo de governar este Estado podem ter certeza de que a cidade de São Paulo será vista por mim sempre como uma jóia rara que necessita de cuidados especiais para que não perca o brilho que lhe é peculiar. Conto com o carinho, o apoio e a compreensão de todos vocês. Saibam que caminharemos sempre juntos. Muito obrigado. Bom descanso e boa noite a todos.”
Raphael viu a mãe desligar a televisão da sala quando acabou o pronunciamento de seu pai à população paulistana, o prefeito prestou esclarecimentos sobre a sua candidatura ao governo do Estado. Lívia preferiu continuar no quarto, não se sabia se ela também havia assistido ao pronunciamento do pai, o fato era que, mesmo sem revelar uma palavra sobre o assunto, a menina andava aborrecida porque queria ver Alberto havia meses sem obter êxito, um dia o prefeito tinha reunião, no outro estava viajando, desculpava-se pela agenda lotada de compromissos. Aos olhos de Lívia tudo não passava de desculpas esfarrapadas de um pai que não se importa mais com sua filha. Betinho se entretinha na sala montando um quebra-cabeça que a mãe lhe comprara, o menino permanecia protegido pela tenra inocência, alheio a tudo o que se passava a sua volta. Todos sentiam muito a falta de Alberto.
Quase toda madrugada ocorriam encontros na sala ou na cozinha, sempre de Mirtes com algum dos filhos, a desculpa: haviam se levantado para beber água. A saudade que sentiam de Alberto, do professor Alberto, do marido Alberto, do pai Alberto, era cada vez mais evidente. Ah! Saudade, sentimento dolorido e quase sempre irremediável, que sufoca o peito e mexe com todo o sistema emocional de quem a sente, não se dorme direito, não se alimenta direito e não se vê felicidade ou satisfação em nada do que se faz. Mirtes tentava demonstrar uma força que não tinha na frente dos filhos, sabia que estava arrasada com a separação, ela ainda sonhava com a volta do marido que um dia teve, não adiantava querer se divertir, sair ou passear, nada para ela tinha importância, a única coisa que ainda a mantinha de pé era o amor e a preocupação com os filhos. No fundo, Mirtes ainda tinha esperanças de que Alberto acordasse daquele pesadelo teatral em que tinha se enfiado e lhe dissesse: “Mirtes, acabou. Eu voltei. Vamos viver juntos novamente, felizes como éramos antes”. Ela amava Alberto e sabia que quem ama verdadeiramente, ama somente uma vez na vida.
Depois que a televisão foi desligada, Raphael e Mirtes caminharam até a cozinha em silêncio, nenhum dos dois se atreveu a pronunciar uma palavra sequer, parecia faltar-lhes coragem para tanto. Mirtes começou a preparar o jantar, enquanto era observada pelo olhar triste e distante do filho sentado à mesa. Raphael levantou a cabeça e encheu os pulmões de ar, como se necessitasse tomar fôlego para iniciar o diálogo:
– Mãe, posso falar uma coisa?
– Claro filho, fala que a mãe está te ouvindo.
– De vez em quando dá uma saudade do pai.
Mirtes pôs a mão na boca e deixou que a cabeça recostasse no peito, ela estava entregue na frente do filho, não dava mais para segurar os sentimentos, as lágrimas eram inevitáveis não apenas pela saudade, havia também a sensação de abandono. O ex-marido podia abandoná-la? Podia. Mas por que fazia aquilo com os filhos?
Raphael também chorou debruçado na mesa acompanhando a tristeza da mãe e se lembrando de que fazia quase seis meses que não via o pai. Mirtes abraçou-se ao filho e toda a tristeza reprimida veio à tona. Naquele momento, lágrimas eram mais que necessárias.

* * * * * * *

Enquanto a tristeza recaia sobre a ex-esposa e os filhos, Alberto desfrutava de toda a repercussão positiva que o pronunciamento que havia acabado de fazer para a população paulistana estava causando. O prefeito, que estava se afastando do cargo para alçar vôos maiores, recebia os cumprimentos de muitos correligionários na sede paulista do PSE de onde fora transmitido o programa.
– Alberto, você foi perfeito, cara! Sabe que eu tive medo de ver tudo acontecendo ao vivo, meu! O que me impressiona é que você tem o controle absoluto sobre cada palavra que fala! Parabéns! Acho que ninguém tira mais o governo do Estado das nossas mãos! – Mário rasgava elogios a Alberto.
– Obrigado Mário, mas não vamos cantar vitória antes do tempo, há um longo caminho ainda pela frente.
Em meio aos ‘pesselistas’ que o cercavam, Alberto sentiu que uma mão segurou-o pelo braço, puxando-o para um cantinho um pouco mais reservado daquele salão.
– Você foi divino, gatão! – dizia-lhe ao ouvido, Mônica, secretária do PSE e uma das presas favoritas do candidato. – Tem alguma coisa pra fazer hoje à noite?
– Mônica, hoje não vai dar. Eu tenho uns assuntos para tratar a respeito da minha candidatura, terei que ficar por aqui até tarde da noite. Mas confesso que vou ficar com água na boca.
– Não, não vai! Eu espero você. Depois vamos pro meu apartamento fazer a nossa comemoração particular.
O poder traz badalação, dinheiro e mulheres irresistíveis. Alberto, embora não se envolvesse emocionalmente com nenhuma mulher, desde que havia se separado de Mirtes tornara-se um homem cada vez mais sedento por sexo. Tinha um apetite voraz pelo sexo oposto. Além de que, contava com um time de belíssimas mulheres dispostas a tudo para ficarem ao lado dele. Eram secretárias, estagiárias, políticas, empresárias, jornalistas e outras mais. A secretária Mônica era uma delas, uma mulher linda e deslumbrante que fazia de tudo para conquistar o coração de Alberto, pois estava realmente apaixonada por ele. A única coisa que ela não sabia era que todo o esforço que fazia nesse sentido era em vão, conquistar o coração de Alberto era impossível. Da imensa vontade que Mônica sentia de ter aquele homem por inteiro só pra ela, restava-lhe apenas o prazer sexual sem limites em que ambos se deleitavam.
Alberto caçoava das tentativas que as mulheres faziam para tentar conquistá-lo: “Vem amanhã de novo, querido”, ao que ele respondia, “Infelizmente amanhã não vai dar, eu volto outro dia”, e somente voltava quando lhe convinha; “Fica mais um pouco, meu amor”, e ele brincava, “Não posso, minha mãe não dorme enquanto eu não chegar”. O comportamento de Alberto com as mulheres era esse, tratava-as como simples e descartável objeto de prazer: “Como essas mulheres são deliciosamente tolas”, arrematava. Amor era uma palavra que não existia para ele, sexo era algo bem mais prático. Por isso, Alberto não perdeu a oportunidade de comemorar a sua candidatura definitiva ao governo do Estado de São Paulo na cama da deslumbrante Mônica.

* * * * * * *

Os meses que antecederam as eleições de 2010 passaram depressa. Alberto, faltando duas semanas para o 1º turno das eleições, aparecia nas pesquisas eleitorais com pouco menos da metade dos votos válidos em relação aos outros candidatos, faltavam apenas três pontinhos na pesquisa para que ele se tornasse, já no 1º turno das eleições de 2010, o novo governador do Estado de São Paulo. Como consegui-los? Estava difícil, todos os candidatos estavam bem preparados e quase não se podia tirar mais proveito de nenhuma falha dos adversários. Chiquinho Sollo pensava numa solução rápida para tentar ganhar o governo do Estado no 1º turno, mas qual?
Alberto havia voltado de mais uma viagem que fizera ao interior de São Paulo, era terça-feira, visitara Américo Brasiliense, São Carlos, Santa Lúcia, Rincão e outras cidades próximas de Araraquara em busca de votos, o candidato estava exausto, optou por permanecer o restante da semana que antecedia à das eleições na sede paulista do PSE. Tinha uma sala no local onde continuava trabalhando e atendendo telefonemas importantes:
– Pronto?
– Doutor Alberto, o seu filho está na linha e quer falar com o senhor.
– Não posso, estou ocupado. Eu já disse pra senhora, dona Lúcia, me passar apenas os telefonemas mais importantes, diga que não estou pras outras pessoas.
– É que ele me disse que era muito importante, dr. Alberto. Então, eu falei que o senhor estava.
– Tá bom! Tá bom! – repetiu, com o telefone escorado no ombro, juntando alguns papéis sobre a mesa e esboçando aquele gesto com as duas mãos no qual se traduz que alguém está de saco cheio. – Transfira a ligação, dona Lúcia.
– É pra já, doutor!
– Alô, pai?
– Oi, Rapha! Você tá bonzinho, filho?
– Estou pai, mas com muita saudade do senhor. Eu queria te ver, pai.
– O pai está muito corrido, filho. Por isso que o pai não tem ido ver você, a Lívia e o Betinho. Nem tempo de ligar o pai tem mais. – desculpava-se o pai que na verdade nem lembrava que tinha filhos.
– Eu sei, pai. Não precisa vir até aqui pra eu te ver, eu vou onde o senhor estiver, pode ser?
– Está bem. Apareça amanhã no meu apartamento para o jantar, vou pedir algo bem gostoso para a gente comer.
– Promete, pai?
– Claro, filho, eu prometo. O pai também está com saudade de você.
– Um beijão, pai! Fica com Deus! Até amanhã! – despediu-se Raphael muito contente porque, até que enfim, veria o pai que ele tanto amava.
– Até amanhã. Se cuida, meu filho.
Alberto desligou o telefone resmungando: “Esses jovens pensam que temos todo o tempo do mundo pra eles. Nos colocam na parede e não temos como escapar dos seus pedidos. Batem o pé até conseguir o que querem. Se não aparecer nenhum compromisso eu irei jantar com o Rapha, mas se aparecer algo mais importante não vou poder ir, pelo menos terei uma desculpa pra dar”.
No dia seguinte, por volta das sete horas da noite, Raphael chegou ao luxuoso prédio onde Alberto morava. O rapaz estava com uma caixa de presente nas mãos, era uma camisa que havia comprado para o pai. Logo na entrada do edifício o rapaz foi avisado pelo gerente Jair de que “o senhor Alberto Monteiro não havia chegado”. “Tudo bem, ele vem para o jantar, vou esperá-lo aqui mesmo”, disse Raphael ao prestativo gerente. “Fique a vontade senhor, se precisar de alguma coisa é só nos chamar”, respondeu Jair.
Oito horas da noite, Raphael acabava de ler a última página de uma revista semanal que estava na mesa do hall de entrada do prédio, uma angústia começava a tomar conta do seu semblante: “Será que o meu pai se esqueceu do nosso encontro?”, pensou o jovem, “Vou esperar mais um pouco, acho que ele se atrasou por causa do trânsito”, procurava algum motivo para se enganar.
Nove e meia da noite e nada de Alberto chegar, Raphael decidiu telefonar para o celular do pai:
– Alô?
– Alô, pai! Onde é que o senhor está? – indagou o rapaz numa mistura de indignação e frustração.
– Ih, filho, desculpa! Eu esqueci de ligar. Não vai dar para o pai jantar com você hoje. O pai está numa reunião inadiável. A eleição já é na semana que vem, e como hoje é quarta, está tudo muito corrido para o pai. Rapha, desculpa! Vamos marcar o nosso jantar pra outro dia?
Raphael ouviu que do outro lado da linha uma voz feminina resmungava alguma coisa mais ou menos assim: “Desliga logo esse telefone, gostosão! Vai, desliga!”. O jovem ficou mudo por uns instantes diante da atitude do pai, que havia furado o jantar para ficar com alguma mulher.
– Depois de amanhã eu acho que dá, Rapha! Tudo bem? – Alberto tentava conciliar o inconciliável.
– Não será mais preciso, pai.
Raphael desligou o telefone sem se despedir. Ao sair do prédio, nervoso e descontrolado, atirou a caixa de presente no lixo e perdeu-se pela rua, cabisbaixo e inconsolável.

* * * * * * *

Madrugada do sábado para o domingo, três dias depois do cano que dera no filho, Alberto escuta no seu apartamento o interfone tocar sem parar. Levanta-se irritado e nervoso com o barulho insistente do aparelho:
– Que diabos esse pessoal da portaria quer a essa hora da madrugada? – resmungava ao atender o gerente do prédio – Pronto?
– Doutor Alberto, desculpe-nos pelo incomodo.
– Fala, Jair. O que foi?
– Apareceu um homem aqui na portaria que se identificou como Mário, seu cunhado, disse-nos que tinha um assunto urgente para falar com o senhor. Tentamos impedir que ele subisse, mas ele nem deu bola. Ele está subindo pro seu apartamento, doutor.
– Tá bom, Jair. Deve ser o meu cunhado. Eu vou atendê-lo. Boa-noite.
Alberto se dirigiu até a porta, a campainha já tocava sem parar, olhou pelo olho mágico e viu Mário, que pareceu-lhe pálido e nitidamente tenso.
– Mário? O que faz você aqui a essa hora da madrugada?
Antes que Mário pronunciasse qualquer palavra, Alberto notou que os olhos do companheiro de partido estavam avermelhados, como de quem tinha acabado de chorar. Os dois se sentaram nas poltronas da sala.
– Quer um copo com água, Mário? Você me parece tenso.
– Alberto tenho uma péssima notícia pra você. Antes de contá-la, eu preciso que você seja forte nesse momento difícil, pois trata-se da pior notícia de toda a sua vida.
– O             que aconteceu, Mário? – indagou Alberto curioso.
– O Raphinha e a Lívia, Alberto...
– Sim. O que têm o Raphael e a Lívia?
– Alberto, eles morreram.
– O que?
– Eles estão mortos... aconteceu quase agora – descrevia Mário com dificuldades – foi horrível a batida... a Mirtes está desesperada e a Ana também... Seus dois filhos estavam voltando de uma festa de aniversário de uma amiga da Lívia... o Raphael estava ao volante... não se sabe se ele perdeu a direção ou se houve alguma falha mecânica no carro... atravessou a pista... e bateu o carro violentamente contra uma carreta que vinha na pista contraria da avenida dos Bandeirantes perto do aeroporto de Congonhas.
Alberto restringiu-se a ir até a cozinha tomar um pouco de água. Mário tremia por inteiro e coçava a cabeça sem parar, precisou de ir até o banheiro, quando voltou, viu Alberto mudo e pensativo no sofá da sala, ainda de pijama e chinelão.
– Ué, Alberto! Vamos, meu!
– Vamos pra onde?
– Eu não acabei de falar que os seus dois filhos morreram. E você ainda me pergunta pra onde vamos?
– Mário, eu tenho uma passeata marcada hoje, você sabe, eu não posso faltar, na semana que vem tem eleição.
Mário estranhou a frieza e sordidez de Alberto diante daquela situação. Como era possível ver um pai impassível depois da morte de dois filhos? Raphael e Lívia estavam mortos e Alberto ainda pensava em passeata, política e eleição. Nem mesmo Mário, com todos os defeitos que lhe pudessem atribuir, poderia imaginar uma reação tão insólita como a de Alberto. Pela primeira vez depois destes últimos anos, ele estranharia o comportamento frio e insensível de Alberto, já havia visto o então cunhado dizer-lhe que se estivesse na administração iria bater, bater, bater, mas pensou que fosse no sentido figurativo das palavras e no calor da conversa, pelo que via agora, aquele homem a sua frente parecia-lhe capaz de tudo. Mário foi até o sofá onde Alberto ainda permanecia sentado, segurou-o bem forte pelos braços e deu-lhe alguns chacoalhões:
– Acorda, Alberto! Acorda! A Lívia e o Raphael morreram, cara! Você é pai deles, eles eram seus filhos, entendeu? Teremos o velório, o enterro, as flores, etc. Você não pode pensar em política agora, meu!
– Eu pago tudo. Pode deixar. Mário, se eles morreram de que vai adiantar eu fazer alguma coisa, eu estar presente? Morreu, morreu, ora bolas.
Mário se descontrolou ao ouvir Alberto falando aquele monte de besteiras, deu-lhe um sopapo no rosto:
– Você vai comigo agora, seu monstro! Senão eu quebro a sua cara inteirinha!
– Tá bom. Tá bom. Não precisa ficar nervoso, Mário. Eu vou. Tudo não passa de uma questão de ponto de vista. Espere aqui que eu vou me trocar.

* * * * * * *

17 - Réquiem

Os primeiros raios de sol anunciavam um domingo de clima agradável, mas a tristeza estava presente no cemitério da Consolação. Os corpos de dois jovens acabavam de chegar ao local. Raphael tinha vinte anos e Lívia, sua irmã, apenas dezoito. A tragédia abateu-se sobre os dois irmãos. Parentes e amigos da família começavam a chegar para prestar solidariedade aos pais dos jovens mortos e lamentar o ocorrido.
Alberto havia passado a madrugada cuidando da documentação e organizando os preparativos que a ocasião requeria. Mário o acompanhou. Por volta das sete horas da manhã, eles chegaram ao cemitério onde Mirtes e Ana, inconsoláveis e abatidas, esperavam pelo início do velório. Mirtes viu quando o ex-marido e o cunhado chegaram, preferiu, no entanto, esperar melhor oportunidade para os cumprimentos. Alberto, antes de qualquer coisa, procurou pela administração do cemitério e solicitou que se providenciasse um esquema de segurança na entrada do cemitério para que jornalistas, fotógrafos e demais profissionais da imprensa não o incomodassem neste momento difícil para ele e sua família. A administração do cemitério da Consolação atendeu ao pedido do candidato ao governo do Estado, que, àquela altura, estava em primeiro lugar nas pesquisas eleitorais faltando exatamente uma semana para a realização do pleito. Depois disso, Alberto foi ao encontro de Mirtes e Ana que conversavam com Mário. Foi abraçado pelas duas aos prantos.
– O que aconteceu? Eu estou sem entender nada até agora. – questionou a ex-esposa.
– Foi uma fatalidade, Alberto! Os nossos filhos eram jovens muito ajuizados. Eu também estou sem entender nada. Por que, meu Deus! Por quê?
– Não rolou bebida na festa que eles foram? É preciso ter muito cuidado, jovens normalmente não têm limites.
– Não. A bebida não foi a causadora desse horrível acidente. – explicava Mirtes, enquanto Ana e Mário se dirigiam até a administração do cemitério – Os amigos do Raphael e da Lívia, aquelas moças e aqueles rapazes que estão ali – apontou para um grupo de jovens que conversavam entre si – me disseram que o nosso Raphinha tomou apenas refrigerante durante a festa de aniversário, ele não gostava de bebidas alcoólicas. O Raphael era um menino de ouro! Meu Deus, como dói! A única diferença que os amigos notaram nele, foi que estava muito melancólico ontem à noite, monossilábico, quase nada falava, foi assim a festa inteira, nem uma mocinha que ficou com ele, esses namoricos dos jovens, conseguia reanimá-lo ou saber qual era o motivo de tanta tristeza. Os amigos ficaram com a impressão de que, pelo comportamento estranho do Raphael, ele devia estar pressentindo uma tragédia iminente.
– Não sei, Mirtes, nestes casos eu não acredito muito em fatalidades. Talvez ele tenha dormido ao volante. – Alberto tentava demonstrar interesse pelos filhos mortos para disfarçar o abandono que dera a eles.
– Não, Alberto. Acho que isso também não aconteceu. O Raphael dormiu bem na sexta-feira, inclusive ontem de manhã ele acordou depois das dez. Tenho certeza de que também não foi esse o motivo do acidente.
– É, o que aconteceu realmente nós nunca saberemos. Também nada disso vai restabelecer a vida dos nossos amados filhos. É uma perda lamentável que marcará as nossas vidas para sempre. Os jovens na idade do Raphael e da Lívia são muito passionais e imprevisíveis. – dissimulava sem um pingo de remorso, enquanto se recordava do desencontro que havia tido com o filho três ou quatro dias atrás, “O Raphael devia estar deprimido por isso. Esses jovens são umas bestas mesmo. Bem, eu não queria que isso tivesse acontecido com eles. Bem, já que foi assim, paciência” – pensava friamente o homem sem coração.
– Alberto, o Raphael esteve com você esta semana, não foi? – perguntou Mirtes – Ele não falou se estava com algum problema?
– A mim ele não disse nada. Jantamos juntos naquele dia e nos divertimos bastante. Ele estava muito feliz. – mentia despudoradamente o homem sem coração, pois tinha percebido que o filho não teve coragem de contar para ninguém da mancada que o pai havia lhe dado. “Raphael também teve a sua ‘noite de almirante’, melhor assim”, concluiu em pensamento.
– Eu sei que ele estava feliz, ele me contou. Aquele foi o último dia que eu o vi contente, passou o dia inteiro se aprontando para a ocasião. Coitado do meu filho, meu Deus! A Lívia também estava bem ultimamente. Pobrezinha da minha filhinha! Meu Deus, por quê? Por quê? – lamentava-se Mirtes enxugando os olhos com um lenço branco que segurava com as duas mãos.
– Mirtes, não fique assim. Precisamos ser fortes. Agora é com Deus. Nós fizemos a nossa parte. A vida é muito ingrata, Mirtes. Você não imagina como estou por dentro também. Nada para mim é mais importante que os nossos filhos, entende?
– Eu sei. Eu sei. Mas pra mim será muito difícil viver daqui pra frente. Sinto-me como se tivessem me dividido em três e depois tivessem levado duas partes minhas, resta-me apenas uma, o Betinho. O que farei agora, Alberto? – calou-se Mirtes e ficou vagando entre as boas lembranças dos filhos.
Ana, que combinava alguma coisa com o marido, chamou-os à sala onde os dois corpos já estavam expostos. Mirtes chorou muito ao ver os dois filhos, antes tão jovens e cheios de vida, agora inertes e frios dentro de duas caixas de madeira, conseguiu apenas sussurrar algumas palavras olhando para o alto e desmaiou em seguida, duas enfermeiras, providenciadas pelos precavidos Ana e Mário, socorreram-na. Mirtes não pôde acompanhar o cortejo, passou aquele e mais três dias no hospital. Alberto tentava demonstrar alguma tristeza diante dos caixões porque ele mesmo ficava encabulado por não conseguir sentir nenhuma emoção vendo os corpos inertes dos filhos que um dia ele amou.
A única coisa que Alberto sentiu naquele dia foi uma vontade incrível de possuir Ana. De vez em quando, mesmo dentro do velório dos filhos, ele dava um jeito de correr os olhos na direção da ex-cunhada e o seu pensamento ia longe: “Caramba! Como a Ana está chamativa. Acho que o Mário não deve dar trabalho nenhum pra ela. Que saúde! Que corpinho gostoso! A minha cunhadinha está uma delícia”, pensamento insólito para a ocasião. No entanto, o homem sem coração chegou a uma conclusão: “Eu não vou descansar enquanto não arrastar essa mulher pra cama”. De tanto que Alberto secava a ex-cunhada, houve um momento em que Mário, marido dela, percebeu o olhar indiscreto dirigido a sua mulher:
– Alberto, você está com algum problema? - perguntou.
– Não, Mário. Estava aqui pensando na Ana.
– Ah, é? Por quê?
– O Raphael e a Lívia gostavam tanto da tia, né? – despistou.
– Sim, Alberto. Ela também gostava muito deles. – Mário envergonhou-se por ter pensado mal do amigo de partido, “Coitado! O Alberto está delirando de dor pelos filhos e eu pensando besteira, que mancada a minha”, ponderou.
O enterro dos dois jovens ocorreu à tarde com a presença maciça de pessoas próximas à família. Alberto estava sempre cercado por amigos, parentes, políticos e bajuladores de toda espécie. Até dois candidatos, adversários na disputa direta pelo governo do Estado de São Paulo, compareceram para cumprimentá-lo e prestar os pêsames à família. Afinal de contas, era um momento difícil para o prefeito da cidade, afastado do cargo, e, eventual, futuro governador do Estado. Os jornais e a televisão divulgaram as notícias do trágico acidente durante o dia inteiro e até à noite alguns canais mostravam as poucas imagens de Alberto no cemitério. Uma imagem marcante, repetida com exaustão pela TV, era a da saída do candidato do cemitério da Consolação, todo de preto e de óculos escuros, pedindo aos repórteres que ali se encontravam que o respeitassem naquele momento de imensa dor, prometendo que daria uma entrevista coletiva a todos no dia seguinte. Ninguém sabia que havia o dedo mágico de Chiquinho Sollo tirando proveito da tragédia ocorrida para impulsionar a arrancada final do candidato para o governo do Estado.
A comoção causada pelo impacto da trágica morte de dois filhos do candidato Alberto Monteiro próximo das eleições, impulsionou ainda mais sua popularidade. Os eleitores guardaram na memória as imagens de um pai triste e cabisbaixo que viram na televisão num domingo inteiro, faltando uma semana para as eleições. Chiquinho Sollo conseguiu com isso muito mais que os pontos de que ele precisava. Não era nem necessário que Alberto, como um verdadeiro ator, dissimulasse um choro na frente dos televisores ligados na entrevista coletiva concedida e no último debate eleitoral antes das eleições do 1º turno. O governo do Estado já estava garantido. A apuração das urnas ratificou o fato, Alberto arrematou 62% dos votos válidos tornando-se, já no 1º turno das eleições, governador do Estado de São Paulo. A fera estava solta, ninguém mais poderia detê-la. A presidência da República era o próximo alvo.

* * * * * * *   

18 - O observador oculto

– Advocacia, boa tarde!
– Por favor, eu quero falar com o Mário.
– Quem fala?
– O governador.
– Tudo bem, dr. Alberto? – a telefonista não obteve resposta do governador e continuou – O dr. Mário não está, ele foi a Brasilia resolver alguns problemas e só deve retornar amanhã. Posso ajudar em alguma coisa.
– Não, obrigado. Você disse que ele só retorna amanhã?
– Sim. Ele deve retornar amanhã. O senhor quer deixar algum recado, governador?
– Não, obrigado. Pode deixar que entrarei em contato com ele outro dia. Não é nada urgente. Passar bem.
Alberto numa das salas do Palácio dos Bandeirantes, de onde despachava e administrava o Estado de São Paulo, soltou o telefone da mão e com um estranho brilho no olhar planejou, “Quer dizer que o gato saiu e deixou a gatinha sozinha. Acho que está na hora do rato tomar conta da casa”.

* * * * * * *

Blim, blom! Blim, blom!
– Já vou! Já vou!
Ana pôs o roupão e caminhou em direção à porta. Estava ainda molhada, com os cabelos enrolados envoltos numa toalha, mas deu tempo de acabar o banho. Chegando até a porta olhou pelo olho mágico e a abriu.
– Alberto, você?
– Boa noite, Ana! O Mário está?
– Não, o Mário viajou a Brasília hoje cedo, você não ficou sabendo?
– Não. Ele não me avisou de nada. Deixa estar, outra hora eu volto. Parece que cheguei numa hora não muito apropriada, né?
– Não, Alberto. Você é sempre bem vindo. Entre para beber alguma coisa, sinta-se à vontade. Só não repare que eu acabei de tomar banho e preciso me trocar. Você me espera?
– Claro. Com licença, Ana.
Tudo estava acontecendo da forma que Alberto havia planejado. E ainda melhor. Só de ver Ana envolvida naquele roupão sua mente foi longe. Sentou-se no sofá da sala enquanto acompanhava a ex-cunhada caminhar deixando as marcas dos pés molhados no assoalho da sala e do corredor. Ana entrou no quarto e deixou a porta entreaberta para poder conversar com Alberto enquanto se trocava.
– E o governo do Estado, Alberto, como vai?
– Vai bem, Ana. Mas é muito cansativo. Comandar um Estado como São Paulo não é fácil, exige muito da gente.
– É, eu imagino. – concordou Ana.
– E a Mirtes, você a tem visto, Ana?
– Quase sempre. Ela está tentando se reerguer. Nos primeiros seis meses depois do desastre foi pior, agora que está quase para fazer um ano do falecimento do Raphael e da Lívia, ela parece estar se conformando mais. Eu imagino como deve ter sido doloroso pra você também.
– Se foi. Eu tenho muita pena da Mirtes, ela convivia mais com eles do que eu. Quase um ano e parece que foi ontem. Quanta saudade eu tenho dos meus filhos, Ana.
– Entendo. Pode ligar a televisão se quiser, Alberto, o controle deve estar por aí. Eu já vou me vestir.
– Acho que vou ligar sim, Ana.
O barulho da televisão seria ideal para que alguns passos não fossem ouvidos. Alberto se levantou do sofá, logo encontrou o controle remoto e ligou a televisão aumentando o volume do som. Em seguida, caminhou pelo corredor prendendo a respiração até a porta do quarto no qual Ana se vestia. Da fresta da porta, um pouco abaixo da dobradiça superior, pôs-se a espiar a ex-cunhada se vestindo, “Que delícia! Olha só que patrimônio! Vale a pena sim, essa mulher é uma potranca! Aquele paspalho do Mário pensa que esse corpo macio vai ser a vida inteira só dele? Ah! Eu quero! Eu quero!”. Ana não percebeu que estava sendo observada por olhos vorazes, vestiu primeiro a calcinha, depois o sutiã e, por fim, colocou uma saia leve, ocultando de vez o corpo nu das vistas insaciáveis do observador oculto. Alberto voltou rapidamente para a sala, “Fiquei com água na boca. Agora que eu quero mesmo. Eu quero!”.
– Pronto, Alberto. Assim está melhor. Faz tempo que a gente não conversa mesmo, né?
– Eu gosto de conversar com você, Ana. E mesmo estando separado da sua irmã, você sabe que você e ela sempre estarão no meu coração. Vocês agora são como irmãs pra mim.
– Você sempre foi muito gentil, Alberto. Isso é o que realmente importa, deixo cada um com seus problemas. Não meto a colher na relação sentimental de ninguém. Acho que mesmo separado, você nunca abandonou a Mirtes e isso é bacana de sua parte.
– Não poderia ser diferente, ela sempre será a mulher da minha vida.
– Desculpe me intrometer na sua vida Alberto, mas por que vocês não voltam.
– Depois que eu entrei pra política a Mirtes mudou muito, Ana. Ela não me entendeu como você entende o Mário. Mas este assunto está encerrado, não há mais volta, pelo menos da forma que era antes. Eu gosto muito dela como uma irmã, como uma amiga. Assim como eu gosto de você.
– Essas questões de relacionamento são complicadas, né? – complementou Ana.
Alberto aproveitou a conversa para se aprofundar no íntimo da ex-cunhada:
– Se são. Se todos os casais fossem como você e o Mário tudo estaria bem, Ana.
– Ih! Você nem sabe, eu e o Mário de vez em quando também temos cada arranca rabo que sai de baixo. Ontem mesmo tivemos um. Você pensa que ele foi a Brasília só por causa de política? Foi nada. Ele foi pra me castigar também. O Mário é assim, enfuna e depois ele volta atrás.
– Ana, você seria capaz de amar outro homem da maneira que você ama o Mário? Desculpe-me pelo tom da pergunta, mas é só curiosidade. Não tem nada a ver com vocês, é só uma curiosidade que tenho de todos os casais que se dão bem. Essa pergunta na realidade é bem pessoal.
– Olha, Alberto. Pra dizer a verdade, eu nunca pensei nisso. Eu vivo tão bem com o Mário, já me acostumei tanto com o jeitão dele que acho impossível abandoná-lo para ter outra relação e ele, tenho certeza, deve pensar da mesma forma. Acho que só pensaria numa coisa dessas se ele morresse e ele, talvez, encontrasse outra companheira se eu de repente faltasse. Acho que só a morte separa os relacionamentos realmente sinceros e leais.Vou pegar algo pra gente tomar, aceita um vinho? Temos um ótimo aqui.
– Aceito, Ana. Sou um apreciador de vinhos.
Quando Ana se levantou para providenciar o vinho, Alberto atravessou o seu vestido com os olhos, imaginando aquele corpo nu novamente. Seria capaz de cometer uma loucura como roubar-lhe um beijo e arrastá-la para a cama com ou sem o consentimento dela. Mas ele não queria assim. Ana não era como qualquer uma daquelas mulheres que ele costumava sair. Alberto preferia conquistá-la, seduzi-la, tê-la por completo todas as vezes que quisesse, mesmo que tivesse de se fazer de bonzinho e bem comportado para despertar o interesse dela. E, depois das palavras sinceras de Ana, um plano maquiavélico e nebuloso tomava forma no seu pensamento, precisava apenas de alguns meses para que aquela conversa fosse esquecida por Ana. Apreciou o vinho e conversou sobre política, família e até futebol com a ex-cunhada, demorando-se ali por mais uma hora. Por volta das nove horas da noite, ele se levantou do sofá, despedindo-se:
– Bem, a prosa está boa, mas preciso ir. O vinho estava uma delícia, Ana. Obrigado.
– Está cedo ainda, Alberto. Fica mais um pouco.
– Não posso, Ana. Bem que eu gostaria, a sua companhia é muito agradável. Mas minha agenda para amanhã está cheia de compromissos e o meu motorista deve estar até dormindo lá na garagem.
– Obrigado pela visita, Alberto. A sua companhia também é muito agradável. – Ana fechou a porta encantada com a educação e o refinamento do ex-cunhado que não havia mudado em nada desde que ela o conhecera, “O que será que deu na Mirtes para deixar escapar um homem desses? Bom, em problema pessoal em não me meto, mas o Alberto continua um pedaço de mau caminho”, concluiu, sem imaginar que aquele caminho era mais mau do que ela pensava. Alberto era um caminho sem volta.

* * * * * * *

São Paulo, janeiro de 2012. O verão chegou com força total, o calor estava insuportável naquela tarde em que dois homens numa moto seguem à distância um veículo esperando o momento certo para o ataque. O motorista que dirige o veículo se livra do trânsito intenso da avenida e se desloca à procura de ruas mais calmas e rápidas para chegar ao local desejado, a sede paulista do PSE. Esta procura por ruas mais calmas e desertas era a brecha que os homens da moto estavam esperando. E no primeiro farol em que o motorista parou, a moto se aproximou do carro:
– Passa esse relógio e a carteira pra cá, bacana! Passa logo vai, vai! Vai rápido, cara! Rapidinho! Rapidinho!
O carro blindado, muito moderno, último tipo lançado no mercado, tinha todos os equipamentos de segurança que se podia imaginar. Tinha também ar condicionado, mas o distraído motorista, quase sessenta anos, preferia manter as janelas do carro abertas para sentir no rosto o vento que vinha das ruas. Naquela ocasião, um erro fatal. Mesmo assustado, o homem atendeu a ordem dos supostos assaltantes, entregando o relógio e a carteira. Eu disse ‘supostos assaltantes’ porque o que ocorria não era um assalto qualquer, tratava-se de uma emboscada. O homem que guiava a moto pegou os objetos, guardando-os nos bolsos da jaqueta, enquanto isso o parceiro dele decretava:
– Valeu, coroa! Temos um presentinho que mandaram pra você! – sacou uma pistola automática e dois estampidos quase surdos encerraram a missão. Um tiro no peito e outro na cabeça decretaram o fim do motorista.
Logo depois do incidente, o governador de São Paulo recebia no Palácio dos Bandeirantes um homem elegante e bem vestido com uma mala nas mãos. Aparentava ser um empresário, um executivo ou um político. Mas não, nada disso. Aquele homem era um dos assassinos do motorista.
– Ato consumado, governador. Tudo ocorreu como o senhor planejou. A investida foi perfeita. Não restou dúvida de que se tratou de latrocínio.
– Bom trabalho! Esse fator é o mais importante, ninguém pode suspeitar de nada, o cara era uma mala sem alça. Amanhã o dinheiro pelo trabalho já estará na sua conta. Faz três meses que estou esperando a maré baixar pra pegar esse peixe. Agora a sereia é minha!
– Desejo boa sorte na investida, chefia! Preciso ir, o dever me chama. Se o senhor precisar de mais algum serviço é só me chamar. Valeu? – despediu-se o pistoleiro apertando a mão do governador em cumprimento.
– Obrigado! Acho que por enquanto não vou precisar de mais nada. Pode ir!
Os jornais e noticiários televisivos divulgavam à exaustão o incidente ocorrido naquela tarde:

Articulador político do partido do governador é morto em assalto. Mário Loretto foi assassinado numa rua quase deserta perto do. . .

No velório de Mário, Alberto que estava muito triste e abatido, chegou até a chorar de saudade do amigo, companheiro e mentor político, prestava todo tipo de solidariedade à viúva Ana:
– Ana, se você quiser, durante este período difícil, pode ficar no Palácio, temos vários quartos lá, fique o quanto desejar. – o governador ofereceu residência à viúva.
– Obrigado, Alberto. Mas estas duas primeiras semanas eu vou ficar no apartamento da Mirtes, depois volto para o meu. A vida tem que seguir, não é?
– Sim Ana, como quiser. Vou deixar com você os meus telefones se você precisar de qualquer coisa é só me ligar. Tá bom?
– Obrigado, você é uma pessoa muito boa e prestativa. Vou guardá-los na minha bolsa, se eu precisar eu ligo.
O governador olhava fixamente para a cunhada e a sua mente imaginava as coisas mais impróprias para a ocasião, “Que tesão a Ana fica de luto! Tenho tara por mulher vestida de preto! Que viuvinha mais gostosa! Agora ela não me escapa mesmo! Como vou aguentar esperar mais tempo?”, Alberto sabia que agora era questão de paciência. Mais cedo ou mais tarde Ana se renderia completamente aos seus desejos.

* * * * * * *

19 - Que Flagra!

Mirtes telefonou duas vezes à tarde para o apartamento de Ana. E como não foi atendido nenhum dos telefonemas, Mirtes concluiu que a irmã não se encontrava em casa. Não quis tentar o celular, decidiu-se por fazer uma visita surpresa à noite. “Certamente para o jantar Ana deve estar de volta”, pensava.
A única pessoa com quem Mirtes se abria ultimamente era com a irmã. Ana era para ela, durante o difícil período que se estendeu de sua separação à superação do trauma causado pela morte prematura dos filhos, o seu sustentáculo. Como retribuição cuidava com carinho de Ana, após a morte de Mário há três meses. As duas irmãs precisavam realmente uma da outra mais do que nunca.

* * * * * * *

Por volta das oito horas da noite, Mirtes chegou ao apartamento de Ana. Notou que a porta de entrada do apartamento não estava trancada à chave, “Que estranho”, pensou, “Bem, Ana deve ter se esquecido de trancar a porta”. Mirtes entrou no apartamento da irmã e logo percebeu que havia roupas espalhadas pelo chão, uma saia, um sutiã, admirou-se que havia também uma camisa masculina e no corredor que dava acesso aos quartos havia uma calça de homem com cinto, toda amarrotada, parecia que as roupas tinham sido tiradas às pressas. Na porta de entrada do quarto da irmã, uma calcinha também estava no chão. Mirtes, que observava da sala, entendeu o momento e preferiu dar meia-volta, voltaria em melhor ocasião, estranhou que a irmã já estivesse namorando decorridos apenas três meses da morte do marido, mas, enfim, deveria respeitar a privacidade alheia, “Cada um faz o que bem entende da vida”. Quando Mirtes começou a caminhar lentamente em direção à porta para ir embora, ouviu uma frase de Ana vinda do quarto:
– Ai, Alberto! Que gostoso, Alberto! – e o sussurro – Faz mais! Faz! Faz!
Mirtes parou por um instante, “Alberto? Não. Não pode ser”, deu mais um passo para ir embora, mas a curiosidade foi maior, precisava certificar-se de que o nome do parceiro da irmã era homônimo ao de seu ex-marido, apenas coincidência. Lentamente, sem fazer barulho, ela caminhou, desvencilhando-se das roupas no chão, até a porta do quarto onde a irmã se entregava ao prazer total. A porta do quarto estava entreaberta, era lógico que o momento de desfrute não deixou margem para que se tomasse maiores precauções em relação a portas. Mirtes olhou da porta do quarto e viu que os dois amantes se entregavam completamente, a irmã sentada sobre o ex-marido parecia uma amazona domando um cavalo enfurecido e, num encaixe perfeito, os dois abdomens formavam um ângulo reto. Mirtes assistia a dois corpos nus entregues ao prazer completo. Mesmo estarrecida com a cena, Mirtes não pronunciou uma palavra, achou melhor assim. Ana, que estava de costas para a porta não percebeu a presença silenciosa da irmã. Alberto, no entanto, notou que a ex-mulher observava o ato de entrega total. Enquanto Ana continuava a cavalgada, Alberto, ainda deitado, dirigiu um olhar de desprezo e indiferença para a ex-mulher que permanecia na porta do quarto. Em seguida, Alberto, enlouquecido, começou a gargalhar, gargalhar e gargalhar. Mirtes virou-se, indo-se embora no mesmo instante, aquilo tudo era demais para ela. Ana estranhando a gargalhada do parceiro, questionou-o:
– Que foi, Alberto? Por que a gargalhada?
Ao que ele respondeu:
– Tesão, amor. Tesão. Muito Tesão.
Dito isso, Alberto possuiu Ana com mais fúria e de todas as maneiras, era como se o fato de Mirtes, sua ex-mulher, o ter flagrado com a irmã houvesse dado um tempero especial para o seu apetite sexual. Ana continuava apaixonada e entregue ao prazer supremo. Os dois formavam um par perfeito na cama.

* * * * * * *

Durante mais de dois meses, depois do assassinato de Mário, Alberto fez o que pôde para conquistar Ana, telefonava quase todo dia para demonstrar preocupação e atenção com a cunhada, visitava-a quase sempre, mas sem forçar a barra ou demonstrar qualquer interesse por ela. Essas coisas foram cativando a triste e solitária viúva. Quinze dias atrás, antes do flagrante de Mirtes, tendo ele, estratégica e calculadamente, passado uma semana sem ligar ou procurar por Ana, recebeu um telefonema dela à noite. Ana lhe disse que havia ligado para retribuir o carinho e o respeito que ele estava tendo por ela, “Mentira.”, pensou, “As mulheres são tão previsíveis e tolinhas”, e arrematou, “ A Ana já está no papo”. Era a hora certa para agir, a fruta estava madura e precisava ser colhida. Naquela mesma noite, Alberto apareceu no apartamento de Ana dizendo que estava com saudade e declarando-se perdidamente apaixonado por ela. Ana, que com quase quarenta anos conservava toda a beleza e charme de sua juventude, fragilizada e deprimida desde a morte do marido se entregou completamente a um beijo de Alberto que a arrastou para a cama.
Daí pra frente, eles se entregavam um ao outro todos os dias, era no apartamento de Ana, no Palácio dos Bandeirantes, no motel, qualquer local era perfeito para que eles se amassem. Ana via amor em tudo aquilo, Alberto só via sexo. Por vezes, Ana dizia:
– Alberto, e a Mirtes quando descobrir que a gente se ama, o que pensará da gente?
– Ana, eu estou separado da Mirtes faz alguns anos e você está viúva. O amor não deve satisfação nenhuma a ninguém.
Ana, mesmo contrariada pelas ciladas da vida que jogou o ex-marido da irmã no seu caminho, não podia deixar de viver aquele grande amor.
– Alberto, eu te amo!
– Ana, eu quero você todo dia.

* * * * * * *

Alguns dias depois do flagrante de Mirtes, um assessor no Palácio dos Bandeirantes informava um fato importante ao governador:
– Excelência! Excelência! Com licença.
– Pois não?
– Acabamos de receber um telefonema do Corpo de Bombeiros para o senhor.
– O que eles querem? Aumento de novo?
– Não, Excelência! Não era um telefonema para o governo, era particular, era para a sua pessoa.
– E então? O que eles queriam?
– Eu nem sei como falar, senhor. Desculpe-me.
– Fala logo! – retrucou o governador.
– Bem, Excelência. Eles informaram-nos de que a sua ex-esposa, a senhora Mirtes Monteiro, cometeu suicídio está manhã. Parece-me que ela se atirou do prédio em que morava.
– Putz! Que loucura!
– Eu sinto muito, Excelência! Minhas condolências!
– Obrigado! O senhor já pode se retirar.
– Com licença.
Alberto, assim que o assessor saiu, abriu um sorriso de satisfação e prazer com o que havia ocorrido, esse tipo de acontecimento parecia excitá-lo e diverti-lo. “Que gente mais idiota! Matam-se a troco de nada. Eu sempre achei a Mirtes meio fraca da cabeça mesmo. Que cretina! Eu não queria que fosse assim, mas o que posso fazer? Morreu, morreu, né? Morrer é verbo intransitivo”. Alberto tomou dois copos de uísque para comemorar a morte da ex-mulher, “Essa não me enche mais o saco!”, concluiu.

* * * * * * *

20 - Manobra governamental

Embora Alberto ainda tivesse uma boa popularidade entre os eleitores, seus primeiros dois anos à frente do governo do Estado de São Paulo não eram nem sombra da sua administração na Prefeitura da cidade de São Paulo. O governo de Alberto continuava austero e eficaz, era considerado bom ou regular pela maioria da população do Estado, quase não se ouvia falar em corrupção no governo paulista, quando o contrário ocorria no âmbito federal, mais especificamente na Presidência da República onde os presidentes que saiam não deixam saudade nenhuma. Alberto dependia de uma popularidade maior porque era justamente a Presidência da República em 2014 o seu maior alvo. No governo do Estado ele tinha se afastado bastante das características que o haviam tornado muito popular, quase não ia às ruas conversar com o povo, não ia mais às festas populares nas quais costumava discursar, não ia mais aos lugares frequentados pelo povo, e sabia que quando o político se afasta, o eleitorado se ressente do candidato. Faltavam apenas dois anos para o pleito que decidiria quem seria o novo presidente da República Federativa do Brasil e em uma pesquisa de opinião, Alberto aparecia apenas em terceiro lugar entre os presidenciáveis, para o PSE isso parecia bom, mas Alberto queria mais. O partido queria disputar a presidência para se projetar ainda mais na cena política brasileira, Alberto, no entanto, queria ganhá-la. Depois que Mário morreu, o PSE sentiu o impacto de ter perdido o seu principal arquiteto político, os políticos do partido estavam sem rumo, o presidente do partido, dr. Tavares, estava afastado por problemas de saúde e o comando do PSE estava nas mãos de Guedes Rabello, ex-professor e político carreirista profissional. Esse era o cenário do PSE para o pleito presidencial de 2014. Alberto poderia tentar a reeleição para o governo do Estado de São Paulo, certamente ganharia, mas não, o homem queria o topo e sentiu que aquele era o momento de se mexer, se quisesse aumentar a sua popularidade deveria bolar uma maneira de ganhar a confiança do país inteiro. Tinha que mostrar serviço. Lendo os principais jornais diários que ficavam sobre a sua mesa, deparou-se com uma notícia que chamou a sua atenção:

Os professores da rede estadual de ensino de São Paulo planejam fazer uma paralisação geral na quarta-feira da próxima semana. Provavelmente haverá greve por tempo indeterminado, os professores estão lutando por. . .

 Imediatamente o governador ligou para a Secretaria da Educação, queria falar com o secretário, o dr. Mello Savigny, político da legenda do partido que aparecia com o candidato primeiro colocado nas pesquisas para a Presidência da República. Alberto havia convidado o dr. Savigny, a democracia tem dessas coisas, para participar do seu governo pela competência que sabia que o homem tinha, mas agora um plano maquiavélico passava pela cabeça do governador, precisava desmoralizar o partido adversário que estava em primeiro lugar nas pesquisas para o Palácio do Planalto, e começaria por Savigny.
– Pois não, governador?
– Como vai o meu mais competente secretário? – elogiou Alberto.
– Vou bem. E o governador mais competente que já vi, como vai? – retribuiu Savigny.
– Preocupado, Savigny. Preocupado.
– Com o que governador? – indagou o secretário da educação.
– Uma greve dos professores está prestes a eclodir na semana que vem.
– Eu já fui informado sobre isso há mais de um mês governador. Toda a secretaria está trabalhando no sentido de contornar isso, mas está difícil. Não há verbas para conceder reajuste salarial este ano.
– Eu sei secretário, eu sei. Eu estou ligando para o senhor porque na semana que vem terei compromissos de governo na Europa, não estarei por aqui. Tenho certeza de que o senhor será competente para resolver a situação, mas gostaria de deixar o meu telefone e qualquer problema que surgir, eu gostaria que o senhor me ligasse.
– Obrigado, governador! Pode falar o número que eu anoto. – o secretário anotou os telefones e estava feliz pelo amparo e a preocupação do governador com os problemas da secretaria da educação.


* * * * * * *


Paris. Quarta-feira da semana seguinte. Alberto aproveita ao máximo a estada na Europa, em Paris o governador está na companhia de... Mônica. A amante havia chegado naquele dia a Paris, viera por solicitação de Alberto. Passaram várias horas passeando e fazendo compras pela famosa “Cidade Luz”, agora estavam deitados na cama de um hotel de luxo no qual Alberto se hospedara. Ana já era carta fora do baralho para o governador. Antes da viagem à Europa, eles tiveram uma discussão feia. Alberto tinha ido ao apartamento de Ana atrás de sexo e foi posto contra a parede por ela:
– Alberto, eu estou cuidando do Betinho, seu filho. Eu o adoro e amo você. Acho que nós deveríamos nos casar. Tenho certeza de que a Mirtes ficaria feliz com a nossa união e Betinho também ficará.
– Você enlouqueceu, Ana? Quem falou pra você que eu pretendo me casar?
– Alberto, e o nosso amor?
– Que amor? Eu estou achando você pretensiosa demais, hein!
– Então, assim eu não quero mais, Alberto.
– Você que sabe, meu bem. Iguais a você eu já tracei mais de cem. Só espero que você não vá pra cama com o Betinho daqui a alguns anos, certo?
Ana perdeu a paciência com o cinismo e a hipocrisia de Alberto, desferindo um violento tapa no rosto dele:
– Suma daqui, seu maldito! Suma daqui, seu cretino! O que você pensa que eu sou, hein? Você pensa que eu sou sua mãe, seu desgraçado! Saia já! Saia!
E Alberto foi embora como se nada tivesse acontecido, “Puxa vida! Eu nunca vi a Ana tão irritada. Não sei por que ela se irritou tanto. Será que ela não se enxerga, não passa de uma piranha qualquer e coroa por sinal”.
Passados alguns dias da briga que tivera com Ana, Alberto se deleitava no corpo de Mônica, “Está cheio de mulher atrás de mim e a Ana querendo que eu me case com ela, ficou doida”. Em Paris todo o romantismo da cidade se propaga no ar, mas Alberto quer o sabor do sexo de Mônica de todas as formas. A linda mulher, durante o intervalo das insaciáveis transas com Alberto, recosta a cabeça sobre o peito dele:
– Engraçado.
– O quê? – ele pergunta.
– O seu coração. Eu quase não consigo ouvir as batidas dele. Acho que ele bate tão tranquilo de amor que a gente quase não escuta.
– É? Deixa eu ouvir o seu agora! Uhnnnnn! Uhnnnnn! Uhnnnnn! – esfregava o rosto nos seios fartos de Mônica.
– Ai, Alberto. Assim você me mata de tesão!
Antes de mais uma transa, o telefone de Alberto toca. Ele se levanta nu para atendê-lo:
– Que dia é hoje, Mônica?
– Aujourd’hui c’est mercredi, monsieur! – respondeu Mônica gastando todo o seu francês.
– Oui, mademoiselle! Merci beacoup! – retribuiu Alberto –. Então é quarta-feira. Acho até que sei quem é. Alô?
– Governador?
– Sim, pois não?
– É o Savigny, secretário da educação.
– Oi, Savigny. O que você manda? – questiona Alberto como se não soubesse sobre o que o secretário da educação queria tratar.
– Governador, o senhor se lembra daquela manifestação dos professores?
– Sim, Savigny. Eu me lembro.
– Ela está acontecendo agora aqui em São Paulo. Os professores estão em passeata percorrendo várias ruas do centro da cidade, estão se encaminhando para a Avenida Paulista, disseram que vão fechar a avenida. Depois continuarão caminhando até a na praça da República e acamparão aqui na frente da Secretaria da Educação. O que o senhor me diz, governador? O que devo fazer?
– Eu acho que você deve ligar imediatamente pro secretário da segurança e impedir o fechamento da Paulista.
– Mas como, governador?
– Savigny, Savigny. É fácil. Fale pro secretário chamar a PM, a tropa de choque, o exército, o esquadrão da morte, a SWAT, e mais o que puder, meta a borracha nessa gente! Mantenha todos sob controle na marra!
– Governador, não se trata de uma medida muito radical? E o Estado de Direito e as garantias constitucionais?
– Ah, Savigny, para com isso! Isso é tudo bobagem, meu nêgo! Você acha que algo é mais radical do que um grupo de vagabundos e malandros fechar a principal avenida da Capital de São Paulo impedindo que qualquer carro por ela transite, inclusive ambulâncias, veículos do resgate do Corpo de Bombeiros e tantos outros essenciais para São Paulo? Desça o caibro nessa gente se for preciso, ora bolas!
– O senhor assume a responsabilidade? – indagou o secretário da educação.
– Você está com medo, Savigny? Você é o secretário da educação e o problema é relativo a professores da rede estadual, não é? Vai querer abandonar o barco agora? Vai ficar feio pra você! – Alberto estrategicamente deixou o secretário numa saia justa.
– Desculpe, governador. Não foi isso que eu quis dizer. Vou ver o que faço. Obrigado pela atenção e desculpe o incômodo.
– Tudo bem, Savigny. Vamor arregaçar as mangas. Eu também não estou tendo folga por aqui.
Alberto desligou o telefone satisfeito com o resultado de mais um de seus planos, “O idiota do Savigny está caindo direitinho na cilada que eu armei”. Deitou-se de novo na cama onde Mônica já o esperava sedenta por mais sexo:
– Quem era, mon amour?
– Um secretariozinho idiota com assuntos mais idiotas ainda! Agora eu quero você de novo, minha gostosona!
– Eu também quero mais, gostosão!
E os dois amantes se entregaram mais uma vez ao sexo total.


* * * * * * *


Passaram-se duas horas e Alberto que continuava fazendo sexo com Mônica, o homem era insaciável mesmo, recebeu outro telefonema de Savigny:
– Governador, a investida contra os professores foi um desastre. Um professor foi morto pisoteado por um dos cavalos da tropa de choque e oito ficaram feridos, estão em hospitais da região central, inclusive dois estão internados em estado grave.
– Savigny, o que vocês fizeram? – indagou Alberto de forma intimidativa.
– Fizemos o que o senhor mandou, governador! – confrontou Savigny, sem saber que aquela era a brecha que Alberto queria.
– Seu incompetente, você está destituído do cargo a partir de agora! – sentenciou Alberto –. Estou voltando pra São Paulo agora mesmo!
– Filho da p...
Savigny não teve tempo de desabafar, Alberto desligou o telefone na cara dele. O governador, chegando a São Paulo, providenciou uma reunião imediata com os dirigentes sindicais dos professores e concedeu o reajuste salarial que a categoria pleiteava, fez questão de informar a todos de que ele não tivera participação alguma no confronto violento que resultou na morte de um colega de profissão, mas que, mesmo assim, desculpava-se pela insensatez do secretário da educação Savigny, já destituído do cargo. A imprensa, no dia seguinte, divulgou o encontro do governador com a categoria dos professores, tornando Alberto novamente um herói nacional:

Governador chega a São Paulo, afasta o secretário Savigny, concede aumento para os professores e põe ordem na casa.

Governador lamenta a morte de professor e chora no enterro.

“O secretário Savigny é o culpado pela morte do professor”, afirma o governador no enterro do educador.
 
O plano de Alberto fora perfeito. Ele conseguiu tirar proveito da tragédia e população o absolveu de qualquer responsabilidade, aplaudindo a atitude do governador de afastar e punir o secretário da educação. Alberto não precisou de muito esforço para consolidar a sua candidatura à Presidência da República, aproximou-se um pouco mais do povo e colheu os frutos da popularidade. O candidato do partido de Savigny despencou nas pesquisas de intenção de votos, indo para as últimas posições. O caminho estava aberto para que o governador chegasse à Presidência. Alberto se afastou do cargo de governador do Estado de São Paulo no final do mandato, foi para o 2º turno das eleições com o candidato do presidente, saiu do pleito vitorioso com a maioria incontestável de votos, 61% contra 39% do adversário. Alberto se tornou presidente da República pelo PSE, mas ignorou a cartilha do partido, decidiu que governaria o país como bem entendesse. “Nas minhas mãos, o Brasil vai ou racha!”, afirmou ao presidente do PSE. Restava ao povo brasileiro, que o via como o ‘Salvador da Pátria’, esperar para conferir.

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21 - O dia da posse

1º de janeiro de 2015, dia da posse de Alberto Monteiro na Presidência da República Federativa do Brasil. O novo presidente acordou cedo e contemplou pela janela o sol que brilhava naquele belo dia do verão brasileiro. Sentiu um bem-estar ao acordar que há muito tempo lhe era incomum. Não sabia por que razão o seu espírito estava tomado por uma sensação gostosa de alegria. O amor, o verdadeiro amor, irradiava de sua alma. Alberto teve vontade de retribuir o carinho que todas aquelas pessoas, que ele via pela sacada do apartamento presidencial em Brasília, demonstravam por ele. Por intermédio de faixas e cartazes, expostas na entrada do prédio, os brasileiros expunham o respeito, a admiração e a esperança que tinham no próximo presidente da República. O presidente eleito acenava para a multidão causando frenesi e histeria. Alberto estava feliz da vida, voltara repentinamente a amar, era como se o coração que ele não tinha, e que jamais soubera que não o tinha, tivesse voltado a bater dentro de seu peito, muito embora a falta da família o comovesse. Lembrou-se de Mirtes, Raphael e Lívia, mortos prematuramente, todos poderiam estar ao seu lado compartilhando aquele momento tão solene se ele tivesse zelado mais pela família. O remorso pela morte dos filhos e da mulher fazia sombra sobre os seus ombros. Lembrou-se dos rostos dos alunos da escola em que durante muitos anos lecionou Literatura e Gramática, será que veria de novo alguns daqueles rostos marcados por um misto de esperança e desilusão no meio da multidão que o aguardava? Sentiu saudade de Cléverson, aquele jovem aluno assassinado por uma ninharia e pela animalidade humana. Sentiu um vazio e uma agonia no peito ao se lembrar de Mário, um homem ganancioso, mas que a sua maneira tentou ajudá-lo, recebendo como gratidão a morte. O remorso pela morte de Mário corroia a sua alma. Outros personagens passavam por sua mente como o diretor Martins e a professora Helena, por onde andariam aqueles dois companheiros queridos?
Alberto de alguma forma naquele dia amava como nunca havia amado a vida inteira. Parecia que depois de tantos anos impossibilitado de sentir qualquer tipo de fraternidade, o amor voltava com força total a sua alma. Lembrou-se de toda iniquidade que sem qualquer explicação plausível foi capaz de praticar e sentiu vergonha do que fez. Sabia que a Presidência da República não lhe viera por mérito, sentia-se um intruso naquele lugar. Sentiu nojo e repugnância por ser mais um político desonesto e sórdido neste país sofrido e de gritante injustiça social. Poderia ter sido justo com as pessoas, preferiu não o ser e agora o caminho não tinha mais volta. O mal que havia feito petrificou-se no tempo. Lembrou-se de Ana e do filho Betinho, ainda havia tempo para recuperar o amor deles, muito embora, independentemente disso, precisava amá-los como nunca. Ainda pela manhã, do seu quarto em Brasília, decidiu ligar para o apartamento de Ana em São Paulo:
– Ana, aqui é o Alberto.
– O que você quer?
– Quero saber como vocês estão? Você e o meu filho, Betinho?
– Estamos muito bem, Alberto. Graças a Deus! O Betinho foi a uma colônia de férias ontem pela manhã.
– Ana, diga sempre a ele que eu o amo muito.
– É? E o que mais você ama além da presidência da República?
– Antes de desligar, eu gostaria sinceramente de lhe pedir desculpas por todo o mal que fiz a você, Ana.
– Está desculpado, mas ficamos somente nisso, Alberto. Ok?
– Claro. Obrigado por cuidar do meu filho. Até breve!
Depois de falar com Ana, Alberto quis dar uma volta para ver o jardim, as flores, os pássaros e as árvores de uma pracinha das proximidades, não pôde fazê-lo por causa da multidão que havia na saída do prédio. Sentiu muita saudade das caminhadas que fazia no parque do Ibirapuera, no bairro do Ipiranga, no jardim do museu do Ipiranga, tudo estava distante dos seus olhos agora. Lembrou-se dos livros que havia comprado e que perdera o interesse de lê-los. “Assim que eu tiver oportunidade vou a São Paulo ler os meus velhos e queridos livros sentado na grama verde do Ibirapuera”, planejou como se isso fosse possível a um presidente da República. Sentiu pena do cachorro que havia matado atropelado sem mais nem menos na frente de Mirtes, sentiu o peito doer de remorso pelo que havia feito ao pobre animal. “Por que será que amar dói tanto?”, questionava-se, “Hoje eu acordei assim, sentindo culpa por tudo o que fiz sem querer. Será que eu quis fazer o que fiz?”.
O presidente eleito passou a manhã inteira imerso naquela ‘crise de amor’. Na hora do almoço com os principais chefes de Estado do mundo, Alberto voltava a expor as suas idéias e a demonstrar com que rigidez pretendia governar e consertar o Brasil. O discurso que faria era uma incógnita, não havia nada pronto, o presidente decidiu que falaria de improviso, mas garantiu que as mudanças no funcionamento da Nação se fariam evidentes a partir dali. Alberto almoçou com cara de bons amigos, sentia agora uma repugnância tremenda pelas pessoas que o rodeavam, “A camarilha já está dando o ar de sua graça”, refletiu olhando para todas as pessoas que trabalhavam tentando ser úteis ao novo presidente, “Todo mundo vai se ferrar na minha mão!”.
Aquele cuidado, aqueles paparicos, aquele zelo com as roupas, o cabelo, o rosto do presidente e tudo mais, ele retribuía com disparates de arrogância, “Você aprendeu a cortar cabelo por correspondência?”, “Com essa roupa cafona que você me escolheu, vão pedir o meu ‘impeachment’ logo de cara, queridinha!”, Alberto voltara a ser o homem sem coração, mas, enfim, era o novo presidente da República e o momento da solenidade de sua posse estava próximo.
Alberto dirigiu-se ao carro que o transportaria até a rampa do planalto, o Rolls-Royce presidencial impecavelmente lindo o aguardava, antes de entrar no carro acenou para a multidão que gritava o seu nome, “Vocês vão se lascar comigo, bando de idiotas!”, profetizou olhando para os olhos cheios de esperança daquela gente sofrida. Sorria para a multidão. Sorria, sorria e sorria... de raiva. “Eu vou colocar toda essa gente debaixo da sola do meu sapato, esperem só até eu começar o discurso”, planejava algo sinistro. O carro partiu levando o presidente à rampa do Planalto. Alberto seguia acenando para a multidão eufórica. E logo o carro atingiu o seu destino.
O presidente desceu do carro e recebeu ali mesmo no início da subida da rampa os cumprimentos de parlamentares, políticos, futuros ministros, amigos e outras autoridades. A televisão transmitia tudo ao vivo. Vários jornalistas, fotógrafos, câmeras e outros profissionais da imprensa falada e escrita não perdiam nenhum momento da cerimônia de posse do novo presidente eleito. O presidente da República, que estava deixando o cargo, desceu a rampa do Planalto para passar a faixa presidencial para o novo presidente eleito.
Alberto recebeu a faixa, mas não retribuiu o cumprimento que o presidente de mão estendida lhe fizera, “Eu quero é que você se dane!”, dirigiu-lhe a frase com o olhar. O homem sem coração virou-se de costas para o presidente que já se retirava e acenou para o povo de mãos estendidas fazendo o tradicional “V” da vitória. Alberto era definitivamente o novo presidente da República Federativa do Brasil. Voltou-se para a rampa e começou a subi-la. O país inteiro, por intermédio de televisões e rádios ligados em alto volume, aguardava pelo primeiro discurso do novo presidente eleito. Alberto contemplava com um riso irônico e um disfarçado olhar de desprezo e indiferença toda aquela gente. Caminhou até o meio da rampa do Planalto cercado por seguranças e pelos novos ministros que seriam também empossados no cargo. Parou por ali. Levou a mão direita à altura do peito e apertou a camisa com toda a força de que dispunha. Caiu já sem vida no meio da rampa. Era o fim da linha para Alberto Monteiro, o novo presidente eleito, o homem sem coração. E toda a população brasileira que assistia à posse do futuro presidente, do ‘Salvador da Pátria’, do homem sinônimo de esperança para o país, lamentou profundamente a sua morte inesperada, causada por um infarto fulminante no coração.

FIM