(In) visivelmente abalado, sujo, só e sem dinheiro, pesava-lhe sobre o pescoço a cabeça de concreto, gritava-lhe nas tripas a marmita de mula: feijão, arroz, cebola e torresmo. Ele seguia sua vida carregado pelos ventos que sopram de vez em quando lançando seus ideais contra os muros das capitais. Enquanto sugavam seu sangue, sua energia, seu tempo, trazia o peito cheio de esperança e as mãos sujas de cimento.
Ninguém reparou seu rosto risivelmente abalado, molhado com pingos de graxa que a chuva trazia do céu, naquela tarde perdida de plena segunda-feira. De repente ouviu: "Escuta aqui filha da puta!". Não, não era com ele. Nem isso era com ele.
No meio-fio da calçada, Avenida Paulista, agachou-se para pegar uma pasta caída e o executivo nem lhe agradeceu. Entrou na padaria, quitanda, farmácia, feira, na zona, na putaria, desceu e subiu a ladeira, entrou pelo túnel, pelo esgoto, pelo cano e não foi notado.
Empalideceu em frente à vitrine da loja de eletrodomésticos fixando a tv com olhos de bomba, ouvindo o governo dizer que o país estava uma maravilha! Pensou na maravilha e na educação de merda, na saúde de merda, no salário de merda, na marmita de mula: feijão, arroz, zoião, de vez em quando pirão, carcaça de peixe.
Bateu cartão de ponto um ano e meio, bateu à porta da igreja e a paz não veio, nem o engraxate na Praça da Sé pediu pelos seus sapatos, talvez soubesse do furo que havia na sola, janela do céu, dava pra ver a lua e as estrelas.
Na banca da esquina viu no jornal que o mandatário supremo expunha um sorriso escancarado pelos dentes e mandíbula que trituravam sua carne e cuspiam seu sangue nas calçadas sujas e fedorentas da Várzea do Carmo, ali mesmo mãos sujas de barro deram o sinal para um ônibus que não parou, e outro, e outro, e mais outro... nenhum parou.
Construiu, lixou, poliu, alisou, pintou, enfeitou tantas casas em que não morou, tantas vidas que não viveu, tantos sonhos que não sonhou.
Sem que ninguém percebesse, desapareceu sem deixar vestígio, planos, preocupação, prestígio, rosto, família, fotografia, documentos, palavras, sentimentos, nome, sobrenome, não deixou lembrança, não deixou saudade. Era sábado de festa, de confusão num bar com paredes caiadas de azul e branco, entre faces frias, na noite fria, ninguém viu nada, de nada sabia, ausência não reclamada, roupa não encontrada, nem ossos, nem corpo, nem alma. Mesmo assim o governo continuava dizendo na tv e nos jornais que o país estava uma maravilha!
Naquela manhã de domingo os pássaros cantavam nos jardins de barro, barulhentos carros entupidos de graxa aqueciam o ar, as feias casas de concreto sorriam pro sol e o mundo nem se deu conta de que havia um morador a menos na face da Terra.
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In: Versorragia Verborrágica - 2006/2011)